Expresso do Amanhã - 1ª temporada

Pouca gente prestou atenção quando a primeira adaptação audio-visual da HQ francesa Le Transperceneige chegou às telas. O filme Expresso do Amanhã, tinha produção caprichada e a direção de Bong Joon-ho pré Parasita. Agora, em formato de série, a história chega em um cenário bem diferente.

O argumento é o mesmo do filme, em nossa tentativa de reverter o aquecimento global, condenamos a Terra à uma era do gelo. Os únicos sobreviventes do planeta habitam o Snowpiercer, uma locomotiva auto-sustentável criada pelas indústrias Willford. Dividida em classes, com uma primeira classe regada de luxos, segunda e terceira classes trabalhadoras, e os clandestinos do fundos, relegados à uma vida a margem desta sociedade.

Qualquer semelhança a nossa sociedade, não é mera coincidência, desde sua origem nas páginas Expresso do Amanhã é sim uma crítica ao sistema de classes. Mas a série chega em um momento em que a desigualdade está agravada por uma pandemia, um evento que assim como o gelo eterno da ficção tem potencial para extinção em massa, e logo após o sucesso de Parasita. Bong Joon-ho, está novamente envolvido com a adaptação, chamando atenção que esta obra sempre mereceu.

Apesar do argumento e crítica semelhantes, a série da TNT, distribuída mundialmente pela Netflix, segue rumo próprio, com personagens e situações distintas. Apesar de os fundistas estarem sempre planejando uma revolução, é um assassinato que move a trama. O crime faz com que o fundista ex-policial Andre Layton (Daveed Diggs) seja recrutado pelos Sr. Willford. É o acesso dele às castas mais abastadas, que abala o sistema e dá oportunidade para o conflito entre castas evoluir. Falar mais que isso, estragaria a experiência.

Ao longo de dez episódios esta primeira temporada, aponta as discrepâncias gritantes entre o luxo dos habitantes da primeira classe, e a miséria dos fundistas. E todo o contexto por trás disso, o sentimento de superioridade dos abastados, o desespero dos miseráveis, e o esforço de quem vive entre estas classes. Apresenta o trem como um sistema complexo, que depende de muitas engrenagens distintas para funcionar. Basta uma informação mal administrada para tudo colapsar. É claro, isso vai acontecer, de forma gradual e constante, com uma tensão crescente que explode nos episódios finais.

E por falar em administração, vale observar a adoração à figura do Sr. Willford, o grande salvador da humanidade. Adorados por aqueles que beneficia, odiado por quem explora, é tido quase como uma divindade, um mito, usado para controlar as massas de uma forma ou de outra.

Iniciando todo episódio com a narração de um personagem que situa o tom e foco da trama, o roteiro não perde tempo para explicar como tudo funciona ao longo dos 1001 vagões de comprimento. As informações são dadas organicamente, ao longo da trama. Uma passagem por vagões de agricultura nos informa como são produzido alimentos, um mapa em uma parede mostra a rota da locomotiva, um defeito explica como determinado sistema funciona, e por aí vai. É convidando a audiência à vivenciar o cotidiano do trem, que o roteiro aos poucos explica seu funcionamento. 

A direção de arte acerta ao criar ambientes claustrofóbicos necessários para reforçar o óbvio: estão todos presos no mesmo barco trem, seja nas grandes cabines da primeira classe, ou no amontoado de camas improvisadas no fundo. A convivência entre classes não é apenas constante, é inevitável. Isso, sem nunca deixar de apontar bem as discrepância de recursos entre eles.

A iluminação é um exemplo evidentes disso. Os vagões do fundo não tem janelas, e pouquíssima iluminação artificial. Conforme evoluímos para os vagões iniciais, a luz aumenta, passando pelos neons do vagão leito, até as iluminadas cabines da primeira classe. Chegando e finalmente à locomotiva, não apenas clara e iluminada, mas o único ponto onde é possível ver à frente.

Já as sequencias externas, que mostram o trem circulando, nem sempre escapam da artificialidade da computação gráfica. O trem é de CGI, obviamente, e muitas vezes isso é evidente. Nada, no entanto, que atrapalhe a narrativa, afinal a ação está no interior do veículo. 

Daveed Diggs traz o carisma e presença ao forte, porém não desprovido de dúvidas, líder de revolução. Enquanto Jennifer Connelly consegue nos fazer torcer pela austera e aparentemente infalível administradora do trem, Melanie Cavill, mostrando que há mais na personagem que apenas eficiência e devoção à manutenção do trem. O elenco secundário mantém o alto nível, com destaque para personagens que de fato tiveram maior desenvolvimento, como a operadora Till (Mickey Sumner), a funcionária da secretaria Ruth (Alison Wright) e a patricinha da primeira classe LJ (Annalise Basso).

Expresso do Amanhã traz uma nova chance de uma excelente premissa chegar ao grande público, com mais tempo para explorar suas possibilidades. Uma ficção-científica, que recria a sociedade em escala, agravando seus dilemas colocando uma lupa sobre seus problemas. Pode não parecer uma grande inovação temática, mas as maneiras de explorar esta premissa são inesgotáveis, com discussões que tanto refletem o momento atual, como apontam problemas recorrentes da humanidade. Além disso é uma série bem produzida e absurdamente empolgante. E chega em um momento que precisamos mais do que nunca, reavivar estas discussões.

A primeira temporada de Expresso do Amanhã tem  10 episódios com cerca de uma hora cada, todos disponíveis na Netflix. A segunda temporada já foi confirmada e deve chegar em 2021.

Leia também a crítica do filme Expresso do Amanhã.

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