O Poço

Em época de crise, em que até discussões revelam o melhor e o pior da sociedade, uma produção de 2019 que não foi exibida dos cinemas brasileiros chegou à Netflix, gerando discussão e apontando assustadoramente para o momento atual. O Poço, filme de estreia de Galder Gaztelu-Urrutia, cria uma metáfora contundente para as mazelas do capitalismo e o comportamento dos indivíduos presos neste sistema.

Goreng (Ivan Massagué) desperta em uma cela curiosa. Trata-se de um ambiente retangular, com uma cama em cada extremidade e um gigantesco buraco no centro, através dele é possível ver dezenas celas idênticas nos andares acima e abaixo. Diariamente uma plataforma desce por este buraco, trazendo comida para todos os prisioneiros, começando farta no nível um, mas logo se tornando um empilhado de restos e louça vazia nos níveis inferiores. A dupla de cada nível só pode se alimentar enquanto a plataforma estiver em seu andar, sob risco de punição se fizerem reserva de comida. A cada trinta dias, todos são realocados aleatoriamente para novos níveis.

A metáfora não é complexa, quem está no topo se esbalda com a fartura, enquanto quem está no fundo do poço luta para sobreviver. E o roteiro sabe explorar todas as possibilidades e relações dentro deste sistema. Convivências pacíficas e conturbadas, reações distintas de cada indivíduo, a impossibilidade de subir, o desespero e ações estremas daqueles que despertam nos andares inferiores. Há também espaço para várias as alegorias religiosas, da entidade superior, passando pelos sete pecados capitais, até a chegada do messias, entre outros símbolos. Nada mais coerente, afinal nossa sociedade também recorre ao lado espiritual na busca por salvação.

Entretanto, mais contundente e aflitiva destas metáforas é a da força do sistema, que revela o pior de cada um, e impossibilitando a quebra do mesmo. A indiferença daqueles que estão acima, que se fartam e esbanjam sem pensar no próximo, tanto pelo receio de acordar nos níveis inferiores no futuro, quanto por puro egoísmo, condena os que estão a baixo. Estes só tem como opção descer. Descida em alguns momentos consciente, mas geralmente imposta, e sempre inevitável, literal e figurativamente. A resposta é simples, se cada um consumir apenas o necessário haverá recursos para todos, mas a maioria não está disposto a ouvir, que dirá abraçar a mensagem. Qualquer semelhança com a sociedade capitalista atual, não é mera coincidência.

O roteiro distribui estas discussões enquanto constrói um clima de desespero e temor crescente. Sem medo de trazer momentos mais pesados, abraçando o gore para causar desconforto e mostrar a decadência daqueles indivíduos. Tudo incomodamente realista, mesmo quando Goreng começa a ter alucinações, afinal esta é uma reação plausível para uma pessoa levada ao extremo físico e psicológico. Já no ato final, a produção torna-se menos literal, oferecendo um desfecho que permite uma gama de possibilidades a serem discutidas.

A direção de arte acerta ao construir um espaço que apesar de amplo, é claustrofóbico, deprimente e intimidador. As celas não são pequenas, a plataforma/mesa também não, mas o confinamento e a sensação de recursos insuficientes é instantânea e cruel. A iluminação fria, outro elemento para criar desconforto, só é substituída pela ameaçadora luz vermelha em momentos de perigo ou alucinação. 

Ivan Massagué consegue transitar bem entre vários "estados de espirito" de Goreng ao longo de sua estadia. Da inconformidade com à situação, aceitação, desespero, desesperança, apatia, luta, determinação, o protagonista passa por uma extensa gama de emoções e leva o espectador junto em cada uma delas. O restante do elenco traz os bons trabalhos de Antonia San Juan, Emilio Buale e Alexandra Masangkay, com destaque para Zorion Eguileor e seu divertido, porém assustador colega de cela Trimagasi.

Vislumbres do mundo externo, pouco explicam sobre a origem e função do poço, passado de seus habitantes e as razões por estarem ali. A curiosidade é inevitável, mas a dúvida é mais interessante. A revelação poderia contentar alguns, mas empobreceria o discurso e as discussões pós filme. O mesmo vale para o desfecho em aberto.

O Poço é uma excelente produção espanhola de terror e ficção-cientifica que dificilmente chegaria aos nossos cinemas. E talvez não chamasse tanta atenção no streaming, não fosse o período de restrições pelo qual estamos passando (#RespeiteAQuarentena). Mas chegou à Netflix com todo mundo em casa, o filme está sendo descoberto pelo público. Em troca, o filme aponta de forma clara e contundente alguns dos "maus comportamentos" que estamos vendo neste período de crise. Acidentalmente, ou não, levanta discussões que precisamos e retrata muito bem a sua época.

O Poço (El hoyo)
Espanha - 2019 - 94min
Terror, Ficção-cientifica

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