
Goreng (Ivan Massagué) desperta em uma cela curiosa. Trata-se de um ambiente retangular, com uma cama em cada extremidade e um gigantesco buraco no centro, através dele é possível ver dezenas celas idênticas nos andares acima e abaixo. Diariamente uma plataforma desce por este buraco, trazendo comida para todos os prisioneiros, começando farta no nível um, mas logo se tornando um empilhado de restos e louça vazia nos níveis inferiores. A dupla de cada nível só pode se alimentar enquanto a plataforma estiver em seu andar, sob risco de punição se fizerem reserva de comida. A cada trinta dias, todos são realocados aleatoriamente para novos níveis.
A metáfora não é complexa, quem está no topo se esbalda com a fartura, enquanto quem está no fundo do poço luta para sobreviver. E o roteiro sabe explorar todas as possibilidades e relações dentro deste sistema. Convivências pacíficas e conturbadas, reações distintas de cada indivíduo, a impossibilidade de subir, o desespero e ações estremas daqueles que despertam nos andares inferiores. Há também espaço para várias as alegorias religiosas, da entidade superior, passando pelos sete pecados capitais, até a chegada do messias, entre outros símbolos. Nada mais coerente, afinal nossa sociedade também recorre ao lado espiritual na busca por salvação.
Entretanto, mais contundente e aflitiva destas metáforas é a da força do sistema, que revela o pior de cada um, e impossibilitando a quebra do mesmo. A indiferença daqueles que estão acima, que se fartam e esbanjam sem pensar no próximo, tanto pelo receio de acordar nos níveis inferiores no futuro, quanto por puro egoísmo, condena os que estão a baixo. Estes só tem como opção descer. Descida em alguns momentos consciente, mas geralmente imposta, e sempre inevitável, literal e figurativamente. A resposta é simples, se cada um consumir apenas o necessário haverá recursos para todos, mas a maioria não está disposto a ouvir, que dirá abraçar a mensagem. Qualquer semelhança com a sociedade capitalista atual, não é mera coincidência.
O roteiro distribui estas discussões enquanto constrói um clima de desespero e temor crescente. Sem medo de trazer momentos mais pesados, abraçando o gore para causar desconforto e mostrar a decadência daqueles indivíduos. Tudo incomodamente realista, mesmo quando Goreng começa a ter alucinações, afinal esta é uma reação plausível para uma pessoa levada ao extremo físico e psicológico. Já no ato final, a produção torna-se menos literal, oferecendo um desfecho que permite uma gama de possibilidades a serem discutidas.


Vislumbres do mundo externo, pouco explicam sobre a origem e função do poço, passado de seus habitantes e as razões por estarem ali. A curiosidade é inevitável, mas a dúvida é mais interessante. A revelação poderia contentar alguns, mas empobreceria o discurso e as discussões pós filme. O mesmo vale para o desfecho em aberto.
O Poço é uma excelente produção espanhola de terror e ficção-cientifica que dificilmente chegaria aos nossos cinemas. E talvez não chamasse tanta atenção no streaming, não fosse o período de restrições pelo qual estamos passando (#RespeiteAQuarentena). Mas chegou à Netflix com todo mundo em casa, o filme está sendo descoberto pelo público. Em troca, o filme aponta de forma clara e contundente alguns dos "maus comportamentos" que estamos vendo neste período de crise. Acidentalmente, ou não, levanta discussões que precisamos e retrata muito bem a sua época.
O Poço (El hoyo)
Espanha - 2019 - 94min
Terror, Ficção-cientifica
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