Em 2020, bem no início da pandemia, em meio aos apelos para respeitarem a quarentena, e os delírios de acúmulo de papel higiênico da população, O Poço chegou à Netflix. O filme espanhol de 2019, pulou a passagem pelos cinemas e chegou direto no streaming em um timming perturbadoramente perfeito. A história de Goreng, exemplificava com perfeição a desigualdade da sociedade que a pandemia intensificara. Fazendo do filme um dos melhores e mais populares do ano na plataforma. É obvio, que uma sequencia seria produzida mais cedo ou mais tarde. Afinal, por mais que critique o capitalismo, a obra ainda é um produto dele.
O tal poço é uma prisão bastante peculiar. As celas para duas pessoas, são ambientes retangulares, com uma cama em cada extremidade e um gigantesco buraco no centro, através dele é possível ver dezenas celas idênticas nos andares acima e abaixo. Diariamente uma plataforma desce por este buraco, trazendo comida para todos os prisioneiros, começando farta no nível um, mas logo se tornando um empilhado de restos e louça vazia nos níveis inferiores. A dupla de cada nível só pode se alimentar enquanto a plataforma estiver em seu andar, sob risco de punição se fizerem reserva de comida. A cada trinta dias, todos são realocados aleatoriamente para novos níveis.
A metáfora era clara, os moradores de cima tinham acesso à tudo, enquanto dos de baixo ficavam com o que restava, ou mesmo nada. Qualquer semelhança com a sociedade capitalista não é mera coincidência. Dentro disso, o roteiro explorava através do protagonistas, e encontros com outros personagens, todas as possibilidades dentro dessa premissa. Problemas de convivência, metáforas religiosas, devaneios, revoltas, e revoluções. Tudo tão bem explorado, que de fato é difícil crer, na necessidade de um segundo filme.
Chegamos então à O Poço 2, acompanhando uma nova personagem Perempuán (Milena Smit), que chega em um cenário bastante distinto do que conhecemos. Há uma tentativa verdadeira de fazer os recursos alcançarem todos os níveis do poço. Com a simples regra de que cada um deve consumir apenas a comida que escolhera. É claro, como em toda sociedade, existem aqueles que se recusam a colaborar. Pretendendo se esbaldar em seus privilégios, mesmo com a perspectiva, e talvez ainda mais por ela, de que amanhã pode acordar em baixo.
Essa talvez seja a única grande diferença do poço, para a sociedade que ele emula. Aqui fora, as posições sociais tendem a ser mantidas. Apesar de alguns raros indivíduos conseguirem ascender, os que estão em cima, dificilmente caem. Mesmo quando erram, as consequências não os atingem. Enquanto no poço, mensalmente sua posição muda, acredita-se que aleatoriamente.
De volta ao cenário encontrado pela protagonista, é a religião quem tenta por ordem na casa. Com fiéis que aceitam seguir as regras, o que inclui não apenas o controle de recursos, mas também punir os que se recusam a colaborar. E os ungidos, vistos como líderes, seres superiores por terem conhecido um messias que os ensinara o caminho para salvar aquela sociedade. Detentores do direito de decidir quem vive, quem morre, e quem sofrerá as mais horríveis punições.
Novamente, qualquer semelhança com religiões que se colocam, ou coloraram no papel do estado, e se tornaram ditatoriais, não é mera coincidência. Galder Gaztelu-Urrutia já havia pincelado discussões religiosas no primeiro filme, e aqui mergulha de forma mais profunda no tema. Trazendo seguidores cegos, descrentes, injustiçados, párias, inquisição, revolução e guerra religiosa, tudo neste microcosmo vertical.
Outra repetição expandida pelo roteiro, é a dúvida entre alucinação e realidade vivenciada pela protagonista em seus instantes finais. Agora mostrando um pouco mais da máquina que controla aquele sistema, e criando novos questionamentos no público. Em especial em relação ao papel de crianças nesse ecossistema.
Interrompemos esta crítica para um momento de reflexão com spoilers, pule este trecho se preferir!
Por boa parte de sua duração, O Poço 2 nos faz acreditar que estamos acompanhando ao que acontecera após a passagem de Goreng. Com o protagonista do primeiro filme como o messias seguido pelos ungidos. Provando que usa mensagem, seja ela a criança, a panacota, ou mesmo sua intensa descida por todos os níveis, teria alcançado alguém. Se não a instituição que administra o poço, seus moradores, ascendendo na audiência uma esperança de mudança.
Então, nos deparamos com Trimagasi (Zorion Eguileor), e descobrimos estar vendo um momento anterior a chegada de Goreng. O que muda completamente nossa percepção. Se antes havia perspectiva de mudança, agora sabemos que não há. Que revoluções e tentativas, são cíclicas. Podem alcançar algum avanço temporariamente, mas a sociedade humana tende a colapsar inevitavelmente.
Aconteceu um revolta antes de Perempuán chegar, o que a fez encontrar uma sociedade que tenta melhorar. A própria protagonista deste filme tenta travar sua própria revolução, que resulta em nada. Já que logo Goreng vai tentar fazer o mesmo.
As novas dúvidas que ficam são o verdadeiro propósito do poço. Seria um experimento? Um complexo sistema de tortura? Um purgatório? E as crianças, qual seu papel nisso? Já que obviamente, não surgem nas celas por acaso. E o mais importante, existe uma saída? Para eles, para nós já que aquela sociedade é um reflexo da nossa.
Fim do trecho com spoilers!
O Poço 2 ainda repete os acertos visuais e técnicos do primeiro filme. Como iluminação e fotografia que intensificam a claustrofobia, precariedade, e urgência de alguns momentos. A violência bem situada, e brutal. E atuações igualmente cruas e guturais. Dessa vez, com um rosto conhecido em cena. Natalia Tena traz uma excelente atuação como agende de ruptura do status da protagonista. Mas, cabe Milena Smit conquistar e guiar a audiência pela sobrevivência. Tarefa que executa bem, ainda que não com tantas camadas quanto o personagem de Ivan Massagué no filme anterior.
Mais brutal e mais caótico, O Poço 2 pode soar como uma mera repetição desnecessária para muitos. E sim, em certo ponto é uma repetição, mas está longe de ser desnecessária. Já que as mazelas da sociedade de muitos por menores, perspectivas, e camadas a serem exploradas. Mesmo quando não estamos mais em um momento de crise, como a pandemia. Ainda é uma obra impactante, que rende excelentes conversas pós sessão.
Leia a crítica de O Poço!
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