O final de Cidade de Deus, o filme de 2002, deixava claro que a história do bairro carioca não terminava ali. Nós é que estávamos assistindo apenas o recorte do primeiros anos, de uma violência cíclica e planejada. Mesmo assim, continuar essa história, seria mexer com um dos maiores clássicos do cinema nacional. Talvez, o maior da retomada. Logo não admira que mais de vinte anos tenham sido necessários, para encontrarem uma forma de retornar aquele microcosmo, e mais, expandi-lo.
Cidade de Deus: A Luta Não Para é uma continuação tardia, em forma de série do longa de Fernando Meireles, que resgata Buscapé (Alexandre Rodrigues), para novamente nos guiar pelas, vielas, becos e histórias da comunidade. Mas, não fica limitada a ele, muito menos ao bairro, mostrando que a luta é cada vez mais complexa.
Assim como na vida real, vinte anos se passaram desde a grande guerra entre Zé Pequeno e Mané Galinha. E como não existe vácuo de poder, a Cidade de Deus passou por muitas mãos até chegar ao período de relativa paz em que a encontramos. Com Curió (Marcos Palmeira) um chefe do tráfico relativamente pacífico no comando. Mas, como mencionei, o cenário agora é mais complexo que o que deixamos décadas atrás. E fatores como a milícia e a política, vão inevitavelmente interferir nesse equilíbrio.
O estopim para a mudança é o retorno de Bradock (Tiago Martins). Um dos moleques da caixa baixa, que cresceu apadrinhado pelo Curió, foi preso por ele, e ao retornar da prisão descobre ter perdido sua posição na hierarquia o tráfico. É a tentativa de retoma-lo, fortemente influenciada pela namorada Jerusa (Andréia Horta), que novamente joga o bairro e seus moradores em uma guerra.
Moradores esses que agora tem mais voz. Se no filme, acompanhávamos a história principalmente pelos olhos de Buscapé, agora outros inocentes ajudam a retratar a vida na Cidade de Deus, tentando sobreviver a essa disputa de poder. É aí que reside o grande diferencial da série. Mostrar que a favela, tem mais pessoas honestas que bandidos. E que viver ali é a verdadeira luta do título.
A série resgata então personagens outrora menores no filme, para papéis de destaque. Barbantinho (Edson Oliveira), o amigo de Buscapé é conhecido e amado na comunidade e está tentando a carreira política para ajudar seus vizinhos. A namorada de Mané Galinha, Cinthia (Sabrina Rosa) administra um centro comunitário.
Curiosamente, ou não, Buscapé, agora também conhecido como o renomado fotojornalista Wilson, é o único que deixou a Cidade de Deus. Mas também o único que lucra com a violência existente nela, já que são fotos de cenas de crime, o que a sociedade requisita dele. Com a mãe e a filha ainda morando na comunidade, nosso narrador se vê incapaz de realmente deixa-la, ainda que tente. O que inevitavelmente o obriga a entrar nessa luta também.
É apenas o retorno da personagem de Berenice (Roberta Rodrigues) que incomoda inicialmente. No filme, ela e a namorada de um dos bandidos do Trio Ternura, na "primeira fase" da história. Ou seja, enquanto para Buscapé e Cinthia se passaram duas décadas. Nosso último encontro com Berê foi há mais tempo, mas obviamente sua interprete não envelheceu esse tanto. Logo, sua idade parece deslocada em comparação com as dos demais. Felizmente, seu crescimento na trama, somado à entrega da atriz, nos faz relevar isso ao longo dos episódios.
Berenice apenas vive na Cidade de Deus, interage com os moradores mais ativos, mas que apenas sossego e afastamento crime. Mas, aos poucos, se vê arrastada para o fronte de batalha, se tornando uma das peças mais relevantes na luta pelo povo. Mostrando como pessoas como Marielle Franco escolhem, ou são escolhidas pelas circunstancias, como representantes de suas comunidades.
Do outro lado da luta, há também o retorno de Cabeção (Kiko Marques). Policial corrupto no filme, que fez carreira na política, daquele tipo que arrasta até os filhos por esse caminho. E agora apesar de estar em uma posição elevada ainda, usa o bairro para alavancar sua carreira.
Mas não é apenas de personagens antigos que vive Cidade de Deus: A Luta Não Para. Além de Marcos Palmeira como Curió, e Andréia Horta como a complexa Jerusa. Novos habitantes povoam e conferem veracidade e novos dilemas a essa comunidade.
Delano (Dhonata Augusto), filho de Cinthia, é policial e tem que lidar ao mesmo tempo com o estigma de viver na comunidade, possivelmente ser filho de bandido, e levantar armas para seus vizinhos. Leka (Luellem de Castro), filha de Buscapé, traz uma subtrama inesperada para a produção. Além da relação perturbada com o pai, ela traz o universo do funk carioca, a ascensão do gênero, e claro, a tentativa dos poderosos de explorá-lo. Enquanto Lígia (Eli Ferreira) vem de fora. É uma jornalista determinada que não tem medo das consequências de lutar contra o sistema. Sem trazer muitos spoilers, sua história também traz um aceno para o caso Marielle.
O elenco traz atuações conscientes e que atendem bem necessidades dos personagens e a narrativa. Os destaques ficam para a visceralidade que Tiago Martins confere à o desequilibrado Bradock, e o crescimento impressionante de Berenice na pele de Roberta Rodrigues. Mas todos estão muito bem em cena, tanto individualmente, quanto como uma unidade que torna aquele mundo coeso.
Com apenas seis episódios, pouco para uma série de TV, mas três vezes mais que um filme, roteiristas e direção, conseguem atualizar e adaptar formato e linguagem com eficiência. Ritmo e abordagem são mais atuais, ao mesmo tempo, que tem mais espaço para explorar detalhes e nuances da história. E resgatar cenas do filme original, para situar a audiência e evocar sentimentos.
Há quem diga, que em alguns momentos, especialmente em seus episódios centrais, a narrativa ganhe contornos novelescos. Mas não acredito que seja um demérito, afinal, esta é uma característica da nossa dramaturgia. Além disso, é eficiente para desenvolver narrativas e personagens enquanto constrói o caminho para o clímax.
Completando o pacote de conversa com a atualidade, a série ainda acerta o tempo de lançamento. Com seu episódio final, que trata sobre eleições municipais sendo lançado, uma semana antes das eleições reais. Como um lembrete gritante da importância de escolher bem seus candidatos.
Cidade de Deus: A Luta Não Para encarou o desafio de mexer com uma obra prima. E o fez da melhor forma possível, equilibrando nostalgia, com novidade, atualizando linguagem, dilemas, e aproximando da realidade atual, não apenas da Cidade de Deus, mas de muitas comunidades brasileiras. É uma grata surpresa da HBO, com espaço para uma segunda temporada já confirmada. Pela qual esperamos ansiosos. Que Buscapé continue a contar suas histórias!
Cidade de Deus: A Luta Não Para tem seis episódios, que foram exibidos pela HBO, já estão disponíveis no Max, e nesta sexta (04/10/2024) estreiam na TV aberta pela Band.
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