Vitória

Quando dizemos que uma única pessoa pode fazer a diferença, geralmente encaramos o ditado de forma mais geral, quase metafórica. Mas de vez enquanto, algumas pessoas surgem para nos relembrar que esta afirmação pode sim ser literal. Infelizmente, por fazer essa diferença, Dona Joana Zeferino da Paz, precisou viver no anonimato, e não receber os louros de seus feitos em vida. Vitória, vem reparar esse anonimato, apresentar sua história, e dar-lhe os devidos méritos. 

Dona Nina (Fernanda Montenegro) é uma senhora de 80 anos, que vive sozinha em Copacabana. De seu apartamento dos sonhos, comprado com o esforço de uma vida, consegue ver as atividades do tráfico de drogas, que constantemente acuam os moradores, e até invadem suas casas com suas balas perdidas. Indignada com a inação da polícia, e a deterioração da região, ela compra uma filmadora (parcelada em doze vezes), e passa a filmar os bandidos de sua janela. Obtendo provas essenciais para para desintegrar a organização criminosa, desmascarando até policiais corruptos. 

Mas, vale mencionar, Vitória é baseado no livro Dona Vitória Joana da Paz do jornalista Fábio Gusmão, que por sua vez, conta a história real. Mas, para a segurança dos envolvidos, principalmente de nossa heroína, nomes, características e detalhes foram alterados em ambas as adaptações. O que permite ao roteiro de  Paula Fiuza, Breno Silveira (ele dirigiria o filme, mas morreu repentinamente no inicio das filmagens, o amigo  Andrucha Waddington terminou seu trabalho), criar uma versão mais "cinematográfica" da história. Escolhendo os personagens, e administrando o tempo de forma diferente para contar de forma mais fluida essa história.

Assim, coadjuvante são escolhidos à dedo para dar vida às temáticas discutidas. Desde os vizinhos, que não compartilham a coragem de Dona Nina. Passando por Bibiana (Linn da Quebrada), vizinha que se alia com a protagonista, por ser e conhecer o diferente. E o pequeno Marcinho (Thawan Lucas, excelente) mais uma vítima das circunstâncias que a protagonista não consegue proteger. Escolhas acertadas, e muito bem utilizadas, para a construção da protagonista, seus desafios, afetos e motivações. 

Mas é Dona Nina quem carrega a história. E consequentemente Dona Fernanda Montenegro, que cria uma senhorinha adoravelmente respondona e abusada. Escondendo muita força e determinação por trás de sua fragilidade física. Acompanhamos a sua tomada solitária de atitude, para salvar seu lar, quando a idosa resolve ela mesma conseguir as provas para a investigação. E mais tarde, a dificuldade para perceber que apesar dos esforços e do possível sucesso, seu lar nunca voltará a ser o mesmo. Assim como a bela xícara que ela tenta colar ao longo filme. As rachaduras continuam lá, e o recipiente não segura mais o café como antes. Os bandidos podem até ser presos, mas a vista de sua janela nunca mais será a floresta segura de quando ela adquiriu o apartamento. E este forçadamente deixará de ser seu lar. 

Alan Rocha completa a batalha, ao dar vida ao jornalista Flávio Godoy, primeiro a ver os registros, e que acompanha a protagonista por toda a batalha a partir dali. No filme é ele quem lhes dá o codinome Vitória do título. 

Apesar de nomes alterados, e de não usar as locações reais onde os eventos aconteceram, Andrucha Waddington consegue construir um Rio de Janeiro, muito característico, e altamente reconhecível mesmo por quem passou pouco tempo por lá. Com mercadinhos de bairro, o encontro entre os morro e os prédios comerciais, e o cotidiano de quem vive naquela comunidade. Trazendo um bairro de Copacabana muito mais real, e menos glamouroso do que a mídia costuma construir. 

Aliás o apartamento pequeno, simples mais repleto de tesouros de uma vida de Dona Nina, é uma riqueza à parte. É dentro dele que boa parte da trama se desenrola, e é nele que podemos conhecer mais profundamente a protagonista, abarrotado por objetos, que limitam o espaço e até criam obstáculos à circulação. Mas, que ao mesmo tempo, marcam sua história, conquistas e dores. Poderia passar horas apenas observando a protagonista vivendo em seu pequeno mundo. 

Some-se aí, a excelente reconstrução de época, o filme se passa em 2005, mesma época dos eventos reais. Muita coisa mudou nesses corridos vinte anos, a tecnologia, as roupas e o filme nos leva de volta. Ao mesmo tempo, que deixa claro que algumas coisas não mudam, sejam boas ou ruins. A gostosa atmosfera de bairros residenciais brasileiros se mantém, mas a violência que os ameaça também. Ainda precisamos de muitas Donas Ninas, Joanas, e Fernandas fazendo a diferença. 

Lamento apenas o filme não mostrar um pouco mais da "verdadeira Vitória". As tradicionais cartelas que encerram a história contando sua identidade podiam ser trocadas por algo mais rico. Mas considerando que sua real identidade fora revelada apenas após sua morte, enquanto o filme já estava em produção. Já que ela precisou viver sob o serviço de proteção à testemunha, pelos últimos dezessete anos de sua vida. Talvez, o que fora entregue tenha sido o melhor possível nessas circunstâncias. 

Vitória é baseado em fatos reais, mas não se limita à uma fidelidade exagerada. Administra eventos reais, com momentos inventados, para construir o retrato valente e carismático como a força da natureza chamada Dona Joana Zeferino da Paz era. A forma com qual merece ser lembrada. Oferecendo postumamente, todo o crédito e reconhecimento que não tivera em vida.

Vitória
2025 - Brasil - 112min
Biografia, Drama

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