Canina

A maternidade é uma condição curiosa. Ao mesmo tempo que desperta um amor incomparável, também pode se tornar a mais cruel das prisões. Onde o leve pensamento de descontentamento é condenado pela sociedade e pelas próprias mães. Abdicar da vida, desejos e personalidades para criar um ser humano do zero, é valorizado em detrimento do indivíduo que a mulher fora, é, e será. Discussão rica e não explorada o suficiente na sétima arte, que ganha espaço em Canina, mas perde em profundidade diante da tentativa de abordar o tema de forma grotesca e surrealista. 

Dirigido e roteirizado por Marielle Helle, Canina conta a história da Mãe, vivida por Amy Adams, que escolheu largar a carreira e se dedicar completamente a criação do Filho (Emmet e Arleigh Snowden), enquanto o Marido (Scoot McNairy) vive ausente, em viagens de negócios para sustentar a casa. Quando o menino tem por volta de dois anos, ela se percebe presa, sobrecarregada e sufocada em uma rotina que não escolheu. Perdendo lentamente a sanidade, começa acreditar estar se tornando um cachorro. 

Reparou que a família não tem nomes, mas papéis sociais? Mãe, Marido, Filho reforçando estereótipos e exigências que a sociedade impõe a muitas mulheres, tenham elas escolhido dedicar a vida à maternidade ou não. Mas, principalmente determinando claramente o sentimento da que conduz todo o filme, o que ela não é mais um indivíduo, apenas uma "mãe", uma vez que toda sua vida gira em torno da criança. Um trabalho que a ocupa 24 horas por dia, sete dias por semana. 

À esta altura você deve se perguntar, e o pai? Sim, os parceiros, por mais bem intencionados que sejam são parte do problema. O que é muito bem retratado quando o Marido se dispõe a banhar o filho "para ajudar", mas é incapaz de executar a tarefa sem pedir ajuda constante à Mãe. E não compreende porquê ela fica irritada, mesmo que ela explique que geralmente ela faz tudo isso sozinha. 

A mulher não apenas executa a maioria das tarefas, mas nos poucos momentos em que é "dispensada", precisa explicar o básico, e estar disponível para auxiliar em trabalhos para os quais ela não tem ajuda. Além de já ter aberto mão de sua individualidade e desejps, em prol da maternidade.  E ao final, ainda precisa ouvir o quão sortuda é por poder ficar em casa com o filho. O mínimo esboço de descontentamento a rotularia como péssima mãe. 

Três parágrafos, e apenas arranhei as possibilidades de discussão do fardo da maternidade. Não mencionei, por exemplo, as mães que não podem se dar ao luxo de ficar em casa. Somando a carreira profissional à jornada, sentindo-se constantemente culpadas por dividir as atenções. Mesmo assim tenho a sensação que discuti mais os temas que Canina propõe, do que o próprio filme. 

Baseado romance satírico homônimo de Rachel Yoder, a produção estrelada por Adams abraça a alegoria de associar, instintos animais à anseios causados pela maternidade. Mais especificamente os instintos de um cão. Associação compreensível, e pode funcionar bem nas páginas, mas na tela a proposta mirra o surrealismo, e acerta no nonsense, e até na vergonha alheia. 

Começando com as mudanças corporais, que parecem ser notadas apenas pela protagonista, em uma mutação enervante. Horror corporal semelhante as vistas em Cisne Negro, de Darren Aronofsky, embora visualmente ainda mais grotescas, no mal sentido. Até as mudanças comportamentais que fazem a mulher latir em um jantar, e avançar em um hamburguer, após rejeitar vegetais por estar virando um cachorro. -Vale ressaltar, cães podem comer vegetais, e o tal hamburguer tinha alface! - Coerente ou não com o argumento, a sequencia causa o estranhamento que deseja, mas passa do ponto, alcançando uma comicidade indesejada. 

Além do fato dessas mudanças gerarem consequências ambíguas. O gato da família de fato morre no embate com a "versão cadela" da Mãe, por outro lado a encenação canina em pleno restaurante não gera sequer um comentário posterior dos presentes. O mais comum, seria compreender que os eventos curiosos, são metáforas para mudanças internas, ocorridas apenas na mente na protagonista, como alguns diálogos repetidos em sequencia com reações diferentes mostram. Entretanto, o gato ainda é morto!

Igualmente incoerente é a forma em que a Mãe encontra uma resolução. Não se entrega totalmente à natureza canina, e encontra uma catarse. Tão pouco procura ajuda ou diálogo. Ela simplesmente se separa do marido, como se este fora seu único problema, e não a sobrecarga e falta de propósito. Então ao se livrar da única rede de apoio, por mais precária que fosse, ela encontra tempo para si mesma? Não faz sentido!

Há ainda tempo para flashbacks, que mostram a relação e perda precoce da protagonista com a mãe. Insinuando, que sua condição tem relação com outras gerações de mulheres, mas nunca esclarecendo de fato que relação é essa. Assim como o instinto animalesco representado em forma de cão tem mais a ver com liberdade e idolatria (dos outros cães por ela) do que com a maternidade e seus efeitos de fato. Sendo no máximo um escapismo raso. 

Incoerências e equívocos à parte, a entrega de Amy Adams é surpreendente. Especialmente nos momentos realistas, onde demonstra com honestidade a estava da rotina materna. Enquanto fotografia e montagem fazem um trabalho eficiente na construção daquela "vida comum", e na relação de causa e efeito dos eventos curiosos que a mãe enfrenta. 

Canina é bem produzido, tem boas atuações, mas se confunde com a própria metáfora. Talvez herança das páginas, ou o resultado da impossibilidade de transpor seu conteúdo para um filme de apenas duas horas. Metáforas são bem vindas, desde que sejam coerentes. A que existe aqui, dificilmente vai ser compreendida para além, de uma experiência curiosa, ou mesmo vergonhosa para alguns. Desperdiçando uma excelente possibilidade de "desromantizar" a maternidade. E discutir suas dificuldades, de forma atual e honesta. 

Canina (Nightbitch)
2024 - EUA - 99min
Drama, Comédia, Horror

Canina foi lançado no Brasil diretamente no Disney+!

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