Uma jovem é resgatada de uma realidade precária, por um homem abastado que se encanta por ela, e passa a viver em uma vida de luxo. Certamente você já viu dezenas de romances e comédias românticas com essa premissa. Se eu acrescentar então a informação de que a moça em questão era garota de programa, você provavelmente vai afirmar que estou falando de Uma Linda Mulher. Mas Anora, filme de Sean Baker (Projeto Flórida), indicado à seis Oscar, é diferente de tudo que você já viu com essa proposta.
Ani, apelido de Anora (Mikey Madison) é uma dançarina exótica e garota de programa de 23 anos, que em uma noite de trabalho conhece um jovem milionário de 21. Vanya, apelido de Ivan (Mark Eydelshteyn), se encanta ao ponto de convidar a moça para sua casa no dia seguinte. Assim, uma noitada, vira um encontro, depois um namoro contratado, e por fim um casamento por impulso em Las Vegas. Mas o conto de fadas começa à desmoronar quando a notícia do matrimônio chega aos pais do rapaz. Um oligarca russo e sua esposa, os verdadeiros donos do dinheiro, e consequentemente das escolhas do filho.
É nessa quebra da ilusão da jovem, e da expectativa do público, que Anora se destaca. Se apresentando como um drama realista disfarçado por diferentes roupagens, em momentos distintos da projeção. Iniciando como um romance sensual, passando pelo filme de desventuras adolescentes e uma comédia pastelão com capangas adolescentes, antes de mostrar sua verdadeira essência. O realista drama de uma jovem, que teve um vislumbre de uma vida melhor, foi pega pela ilusão, apenas para que esta lhe fosse arrancada das formas mais cruéis possíveis.
Originalidade que surpreende positivamente, embora eu tenha algumas ressalvas, principalmente quanto à duração e ao tom do ponto de virada da história. Em relação ao tempo, o filme tem duas horas e vinte minutos, que poderiam ser um pouco menos. Algumas cenas, especialmente da construção do relacionamento são mais longas que o necessário. Basta notar que leva mais de quarenta minutos, para que sejamos apresentados a verdadeira problemática do filme. Em um momento que também peca pelo excesso.
O ponto de virada, também traz um novo tom, o da comédia pastelão, quando os capangas do oligarca chegam na casa dos jovens para tirar a história à limpo. São vinte minutos de uma sucessão de erros, pataquadas e equívocos, um caos que para muitos vão soar como o ápice da comédia do filme. E eu compreendo isso, mas o exagero não funcionou para mim, e creio que não sobreviva à uma segunda assistida daqueles que o acharam hilário inicialmente. Isso porque, ao mesmo tempo em que toda a comicidade se desenrola, a protagonista também está sofrendo abusos físicos e psicológicos absurdos.
Contida e amarrada contra à vontade por homens que desconhece, sem compreender o que está acontecendo, enquanto seu marido a abandona, e ela percebe que não está no conto de fadas que sonhara. Por mais que o humor da cena seja bem construído e conduzido, não consegui engajar e achar graça da caótica situação. O tom realista do mundo criado por Baker impediu meu escapismo.
Por outro lado, a sequencia dá ainda mais oportunidades para Mikey Madison mostrar sua versatilidade e entrega. A atuação da moça é sem dúvidas o ponto alto do filme. Partindo de uma moça nada ingênua que vende ilusões para homens de todo tipo, inclusive supostamente mais maduros que ela. Que é usada e convencida de que outra ilusão era real. E que é jogada cruelmente de volta a realidade. A sequencia em que ela descobre a verdadeira natureza das ações de seu marido, é sem dúvida o momento mais tocante do filme.
Tocante também porque nesse momento, percebemos a empatia de um personagem secundário surpreendentemente relevante. O capanga Igor (Yura Borisov), que passa a ser a sombra e desafeto da mocinha desde o momento em que aparece, se mostra o único à vê-la como um ser humano em toda essa situação. Olhar que vai se desenvolvendo e intensificando, até que as desavenças caiam por terra, e a dupla chegue a um comovente entendimento e cumplicidade.
Enquanto Sean Baker mantém uma atmosfera realista curiosa. É o mundo cruel e cheio de problemas como o nosso, mas onde há momentos de ludicidade fabricada, como a atmosfera da boate, o brilho de Las Vegas, ou mesmo o sonho da moça de conhecer a Disneylandia. Como é cruel perceber que a colega de trabalho implicante da protagonista estava certa! A crítica é sobre a facilidade de ser ludibriado por esses mundos perfeitos, mesmo para aqueles que ajudam à cria-los. Se Anora, que vivia de criar fantasia para homens, fora facilmente enganada por essa promessa. Imagina nós, sentados impassíveis diante da tela, recebendo docilmente tudo que nos é vendido.
Embora um pouco mais prolixo do que eu gostaria, Anora é uma narrativa ousada, sobre uma realidade cruel. Um romance repentinamente destruído pelo drama que é o mundo real. Inteligente, crítico, e para muitos até divertido.
Anora
2024 - EUA - 139min
Drama, Romance, Comédia
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