A Baleia

A associação entre  Charlie e o animal título de A Baleia, felizmente não é tão simplória quanto a mera comparação de tamanho entre ambos (mesmo porquê esta seria uma escolha clichê, gordofóbica e de muito mal gosto). A jornada final do protagonista que sofre de obesidade mórbida é muito mais complexa, profunda e humana que as dificuldades de sua condição física. Charlie é professor de literatura, e uma resenha Moby Dick está entre os trabalhos favoritos de seus alunos, e esta é só uma das muitas interpretações para o título.

Charlie (Brendan Fraser) é um professor que vive recluso, que sofre de uma compulsão alimentar e sua consequente obesidade mórbida, causados por um luto extremo. Quando percebe que seu fim está próximo, ele faz um último esforço para se reconectar com a filha Ellie (Sadie Sink), quem abandonou anos atrás para viver um grande amor. 

O cotidiano dos últimos dias desta alma torturada tentando reparar o grande erro de sua vida para partir em paz, é o que acompanhamos neste drama de Darren Aronofsky. Passado inteiramente no escuro e entulhado apartamento em que está "encalhado", quase sempre ao som de tempestades que o isolam ainda mais do mundo, Charlie busca uma maneira de emergir de sua condição, não fisicamente, mas em espírito. 

E não faltam opções para o personagem fazê-lo (tanto no plano físico, quanto espiritual), desde a cunhada e amiga enfermeira Liz (Hong Chau), que tenta inutilmente resgatá-lo de sua inércia, passando pelo missionário Thomas (Ty Simpkins) que oferece sua rígida perspectiva do mundo, até o entregador de pizza, que só quer criar uma conexão com o cliente que nunca vê. Mas a única relação que importa para Charlie é com a filha adolescente, que o odeia, e parece se esforçar para fracassar na vida. Resgatar a própria filha de seu ódio, e consequente rebeldia, torna-se sua derradeira missão.

Assim acompanhamos interações e conversas de diferentes naturezas e intenções, entre esta limitada gama de personagens. A genuína dedicação de Liz. A atitude dúbia de Ellie com Thomas, que acaba por se tornar benéfica, mas pode ter surgido de um ato de maldade. A bondade preconceituosa do jovem missionário, nada é simples ou direto nas relações que vemos aqui. Óbvia mesmo apenas a culpa, o desejo de corrigir os erros, e a desistência do protagonista da própria vida. 

Brendan Fraser deixa transparecer todas essas camadas de sofrimento, e os poucos instantes de alegria, por baixo de um pesado trabalho de maquiagem. Exaltando a diferença entre suas duas lutas, a física e a emocional. Por mais que o mero ato de se mover pareça um esforço inigualável, ligar a webcam e mostrar sua verdadeira face a seus alunos é um desafio ainda maior. Só não tão grande quanto deixar de se ver como uma pessoa horrenda, grotesca e digna de pena para os que o cercam, e principalmente para quem ama. 

É por comunicar tudo isso, que o ator tem sido merecidamente ovacionado em seu retorno à indústria. O fato do ator ter sido considerado sex-symbol musculoso no final da década de 1990 e início dos anos 2000, apenas reforça o impacto da condição do personagem. Enquanto surpreende aqueles que viam o ator como apenas um rostinho bonito.

Acompanhando o bom trabalho do protagonista, o restante do elenco entrega atuações honestas e realistas diante das questões que lhes são apresentadas. Sink mostra a mágoa pelo abandono, e o desejo de conexão do qual se envergonha, por baixo de sua rebeldia adolescente. Chau traz a preocupação e desolamento genuínos de alguém que cuida enquanto assiste alguém se deteriorar gradualmente. Ty Simpkins e Samantha Morton trazem uma mistura de preconceito e pena, por diferentes motivos. Ela ainda soma a esses sentimentos o rancor por ter sido trocada por outro amor. 

A Baleia é adaptação de uma peça de mesmo nome de Samuel D. Hunter, que também assina o roteiro do filme. Mas é a visão de Aronofsky, que transpõe essa história com maestria, extraindo uma grande gama de interpretações e questionamentos da rotina de alguém que já desistiu.

 
O diretor nos confina no apartamento escuro e entulhado de Charlie, tal qual Gepeto no interior da baleia, não apenas para nos fazer criar empatia. Mas para nos mostrar como seu mundo era pequeno, e sua existência ínfima mesmo antes de partir. Charlie via pouca gente, tocava pouca gente, por isso seu último esforço para fazer a diferença na vida de alguém é tão memorável. Ele está preso em sua depressão, muito mais que em sua condição física.

Culpa e luto são sentimentos que podem facilmente encalhar uma pessoa em vícios e depressão. Somos todos passíveis de encará-los, assim como o desejo de se redimir. A Baleia é dolorosamente realista. E por isso tão relacionável e tocante. 

A Baleia (The Whale)
2022 - EUA - 117min
Drama

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