Lydia Tár não é uma personagem real. Tár não é uma biografia. Parece bobo, mas percebi que é necessário revelar isso para o público, uma vez que a composição de Cate Blanchett e o olhar de Todd Field criam um realismo incomum para a personagem título. Enquanto nos convida e nos repele, na mesma medida, a conhecer a vida e segredos da artista.
Primeira maestrina da Filarmônica de Berlim, rara vencedora do EGOT (Emmy, Grammy, Oscar e Tonny) e detentora de dezenas de outros méritos muito bem ostentados logo nos primeiros minutos de filme a renomada maestrina/compositora Lydia Tár (Blanchett) está no topo do mundo. Desfrutando os privilégios do auge de sua carreira, para o bem e para o mal. É claro, que a partir do topo, o único caminho é para baixo, seja na vida real ou na ficção. E esse é o caminho que vemos a musicista trilhar ao longo deste filme.
Mulher e lésbica, fica logo evidente as dificuldades que a personagem precisou enfrentar para alcançar o posto mais alto no mundo da música clássica. Entretanto, a característica que apresenta a personagem como digna de admiração, logo se transforma em algo amargo, conforme descobrimos no que a personagem se tornou em consequência desse caminho árduo, em conjunto com sua personalidade e genialidade incomuns. Manipuladora, disposta a usar sua posição para tirar e conceder favores para atender seus desejos pessoais. A mulher que nos é apresentada falando sobre abrir portas e romper barreiras para mulheres no mundo altamente masculino da música clássica, faz exatamente o que os homens de poder que ela superou faziam. Usa sua posição para agir como predadora sexual. Usando e descartando jovens talentos, a seu bel prazer sem se preocupar com as consequências, para essas jovens, para sua família e carreira.
Blanchett consegue resumir toda essa genialidade, inquietação e dubiedade em uma interpretação que equilibra maneirismos e vacilações de uma mente em constante movimento, com a precisão de gestos quando rege uma orquestra. Lydia é uma personagem extremamente complexa. Não é má pessoa, ainda que cometa conscientemente ações condenáveis, realmente ama ainda que não dê valor aos relacionamentos duradouros. Características que ficam ainda mais evidentes em sua relação com a filha, por quem cometeria um crime, mas prefere ver longe de seu local de trabalho.
Ainda falando sobre família, outra atuação digna de nota é de Nina Hoss. Dando vida a esposa da protagonista, ela transmite com economia toda a frustação e decepção ao perceber e ser incapaz de evitar as ações da parceira. Completando o trio de atuações principais Noémie Merlant dá vida à Francesca, assistente cuja relação com Lydia nunca é totalmente exposta, mas é claramente complicada. Uma profissional com ambições e ética que suporta os caprichos da chefe na esperança de ser recompensada no futuro.
O comportamento de Tár, ainda levanta um questionamento atual, tanto diretamente no texto, como em suas nuances: é possível separar a obra do autor? A discussão que é apontada em uma aula ministrada pela maestrina logo no início do filme, ecoa ao longo da produção, conforme a protagonista se mostra uma pessoa digna da infame "cultura do cancelamento".
Tudo isso, levando o espectador a navegar de forma incomum na vida da personagem. Ora observamos sua intimidade, até seus sonhos. Em outros momentos, observamos afastados conversas complexas sobre o mundo da música, ou ainda vagas e cheias de códigos sobre um passado da protagonista que os personagens conhecem, mas nós não. Como no caso de suicídio da jovem Krista (Sylvia Flote), que sabemos, tem relação com Lydia, mas nunca descobrimos exatamente o que acontecera. Sequer vemos o rosto da musicista.
Embora Todd Field, que também assina o roteiro, seja preciso na construção dessa personagem, e na forma como deseja retratá-la, é preciso apontar: Tár não é um filme acessível. De compasso constante, e bastante focado no mundo exclusivíssimo da música clássica, não é incomum se perceber perdido nos jargões e discussões da musica clássica. Tão pouco se sentir entediado pelo ritmo arrastado e cansativo (meia hora a menos fariam bem à produção). Field não se furta de deixar Lydia dar longas e complexas aulas sobre os meandros da música. Se por um lado apresenta todo o conhecimento e complexidade da mente da musicista, por outro afasta expectadores (ou seria ouvintes) comuns.
Tár é extremamente bem executado, e ciente da história e personagem que deseja retratar, mas é arrastado e cansativo. Se sustenta apenas entre os mais persistentes, graças as excelente atuação de Blanchet que desaparece na pele de Lydia. No mais, é mais uma boa história de abuso de poder, ascensão e queda que o cinema volta e meia encontra novos formatos para abordar.
Tár
2022 - EUA - 138min
Drama
Postar um comentário