Pinóquio por Guillermo del Toro

Algumas adaptações se tornam tão populares, que se transformam na "versão oficial" daquela obra no imaginário popular. Mesmo que divirja do original, ou que existam inúmeras outras versões da mesma história. A maioria das pessoas, por exemplo, não consegue evitar pensar no fofo boneco de madeira vestido com cores primárias e luvas do Mickey, quando ouvem o nome Pinóquio. Felizmente, Guillermo del Toro não é uma dessas pessoas.

De fato, o diretor que tem um carinho especial pelo personagem desde a infância, tem sua própria visão e interpretação dos temas que a história da marionete pode abordar. E lutou por anos para levar sua ambiciosa versão às telas. Assim chega à Netflix Pinóquio por Guillermo del Toro, que além de toda a personalidade visual que o diretor costuma dar à suas produções, ainda é feito através de uma das técnicas mais charmosas e trabalhosas do cinema, o stop-motion.

Apesar da linha principal ser praticamente a mesma, um boneco de madeira construido por um velho solitário ganha vida e precisa aprender e amadurecer neste mundo, a ambientação e jornada vistas aqui são únicas. À começar pelo período histórico, ao invés do século XVIII, o filme é se passa na ditadura de Mussolini, na primeira metade do século XX. Já colocando a guerra e o fascismo como uma das ameaças e, principalmente, temas a ser debatidos aqui. 

Há ainda tempo para questionar religião. Em especial por uma cena que surpreende pela simplicidade. Rechaçado pelos moradores da cidadezinha em que vive Pinóquio (voz de Gregory Mann) questiona, como essas pessoas podem adorar o homem de madeira pregado à cruz (referindo-se à estátua de Cristo), mas odia-lo, sendo que os dois são feitos da mesma matéria?

Vida, morte e luto também são temas aqui. Seja pelo luto que leva Geppetto (David Bradley) à depressão e ao acesso de fúria alcoólica que o faz construir Pinóquio. Seja na figura das entidades irmãs (ambas tem a voz de Tilda Swinton) que administram a vida e a morte do boneco. Vida e morte, aliás, funcionam diferente para o protagonista. Aprender sobre pelo que vale viver ou morrer, também está entre as lições do personagem. Bem como compreender e aceitar a dor e a beleza da efemeridade da vida humana. 

E claro, a temática tradicional da criança rejeitada, diferente, que não consegue se encaixar move a trama. Pinóquio não quer "ser um menino de verdade", ele acredita que é, e quer que as pessoas o aceitem como é. Quem nunca se sentiu deslocado e descartável na vida? Como espécies sociais  estamos sempre encontrar este lugar de pertencimento, que muitas vezes chega apenas com a maturidade.

Nesta jornada de amadurecimento, Pinóquio tanto aprende quanto ensina. A cada encontro o boneco influencia as pessoas ao redor com sua inocência e forma de ver a vida. Candlewick e Spazzatura (Finn Wolfhard e Cate Blanchett respectivamente) são os exemplos mais óbvios. Mas todos amadurecem com a passagem do boneco em suas vidas, inclusive Geppetto e o Grilo (Ewan McGregor). O inseto falante, é novamente narrador e nosso guia nessa jornada. 

Tecnicamente é impossível não passar toda a duração do filme abismado com a animação em si. Imaginando o enorme trabalho, detalhismo e paciência para construir este universo fantástico. Cenários complexos, uma profusão de personagens, e detalhes que precisam de atenção a cada segundo. Pensando apenas em um personagem, eles precisaram animar cada olho, das assas daquela Esfinge. 

Um design de produção único completam o primor técnico dessa obra. Pinóquio por exemplo, foi criado por um artesão bêbado e deprimido, e seu visual reflete isso. Em madeira crua, acabamento rústico, pés e braços que são praticamente gravetos. Esse cuidado é perceptível em todos os personagens, das pessoas de "formatos incomuns" do circo, passando pela anatomia mais realista do Grilo, até a profusão de simbolismos das criaturas mágicas.

Curiosamente, por causa de suas temáticas maduras e complexas, o mundo de del Toro para seu Pinóquio é realista, apesar de seus elementos fantasiosos. Também é melancólico, e deprimente em alguns momentos, sendo o protagonista o ponto de esperança e luz daquela realidade desgastada. 

Complexo, maduro, rico e melancólico, este Pinóquio não é exatamente para crianças. Não me leve à mal, a molecada vai curtir a produção de visual deslumbrante, que tem momentos de humor (físico principalmente, coitado do Grilo) e música. Mas adultos tirarão muito mais dessa obra, uma experiência cheia de reflexões para os mais velhos.

Existem muitas versões do conto de Carlo Collodi, para cinema e TV. Pouquíssimas conseguem se tornar referência, e fazer parte permanente do imaginário popular. Acredito que Pinóquio por Guillermo del Toro seja uma destas obras que perduram.

Pinóquio por Guillermo del Toro (Guillermo del Toro's Pinocchio)
2022 - EUA/Mexico/França - 117min
Animação, Drama, Fantasia

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