Um milagre é primeiramente um evento que reforça a fé das pessoas, mas também é uma oportunidade! Oportunidade de manipulação, exploração e manutenção do poder de pessoas sem escrúpulos, mesmo que sacrifique outros para tal. Por isso há tanto em jogo na missão da protagonista de O Milagre da Netflix.
Lib Wright (Florence Pugh) é uma enfermeira no século XIX, contratada para comprovar, ou desacreditar, um suposto milagre em um pequeno vilarejo na Irlanda. A jovem deve vigiar Anna (Kíla Lord Cassidy) uma menina que não come há quatro meses e mesmo assim permanece saudável.
Vale aqui contextualizar, esta história se passa em 1862, anos depois da Grande Fome na Irlanda (1845–1852). Período em que uma praga de batata, principal alimento da população, causou fome, doenças e emigração em massa reduzindo a população irlandesa em cerca de 25%. Logo, uma menina pura o suficiente para ser abençoada com a libertação das necessidades da carne, é algo que mexeria muito com o imaginário popular da época.
Mas Lib é inglesa, e enfermeira, e faz de um tudo não apenas para provar que tal feito é impossível, mas para demover as pessoas dessa crença e salvar a garota da inanição. Os líderes da cidade, incluindo o padre e o médico, não queriam a verdade, mas a comprovação do milagre, que traria importância e até renda para o vilarejo, através da peregrinação. E sua opinião não muda mesmo com a deterioração da saúde da menina, com a vigilância constante de Lib e da freira que reveza os turnos com ela.
A garota por sua vez, acredita em tudo que lhes é imposto. Dizem que ela não deve mais comer, ou reclamar suas dores, assim ela o faz. Dizem que ela é santa e importante, e ela age como tal. Kíla Lord Cassidy encarna com perfeição a figura de uma criança totalmente dedicada aos papéis que lhes foram atribuídos. Mas ainda sim, uma criança, influenciável e manipulável, mesmo que pareça completamente certa de sua natureza.
O restante do elenco traz o trabalho eficiente de nomes conhecidos como, Tom Burke, Toby Jones, Dermot Crowley, Ciarán Hinds e Brían F. O'Byrne. Mas é Florence Pugh quem guia e dá o tom da produção. Construindo uma personagem cética e obstinada, presa em um vazio de luto que encontra uma missão, salvar a menina loucura religiosa. Mais uma vez, a excelente atriz, cede espaço para a personagem completamente, desaparecendo por baixo das melancolia e firmeza de Lib.
Nas várias sequencias em que vemos a personagem comendo, por exemplo Pugh consegue imbuir o simples gesto de se alimentar de várias informações e interpretações. Não há prazer no ato de comer, não sabemos se a comida é gostosa, se está quente, se ela aprecia o sabor. Lib se alimenta para sustentar o corpo, pois não há prazeres em sua vida. E é esta mesma necessidade de sustento, que ela direciona para a proteção de Anna. Não há espaço para crendices, tão pouco o deleite, a sobrevivência é o foco.
O que também transparece esse tom de sobrevivência, são a direção de arte, figurino e fotografia. Enquanto os dois primeiros constroem uma Irlanda nada aprazível, e de condições de vida precária. A fotografia traz o tom melancólico e religioso, com tons que lembram pinturas religiosas. Pause qualquer sequencia, especialmente as internas, e a sensação é de estar diante de um quadro em um museu.
O ritmo é compassado, ressaltando a dureza daquela vida. O que pode incomodar alguns, na minha opinião apenas aprimora o suspense e mistério em torno da condição da garota milagrosa. Já que o roteiro nos coloca ao lado da protagonista desde o princípio, mas demora para mostrar que ela de fato está certa.
É apenas o inicio e o fim do filme que causam estranheza por escolhas duvidosas. Sebastián Lelio escolhe começar e terminar a produção mostrando seus bastidores. Direto do estúdio, entramos no cenário e em seguida no filme, ao final retornamos para "trás das câmeras". Talvez uma tentativa de gerar afastamento, ou de mostrar que a própria produção não tem as mesmas crenças que os personagens. O resultado é uma firula curiosa, mas que por inexatidão das intenções, não somam em nada à narrativa.
O filme é baseado no livro homônimo de Emma Donoghue (a mesma autora de O Quarto de Jack). Este por sua vez é inspirado pelo fenômeno das "garotas em jejum" que se repetiu em diversos lugares da Europa no século XIX.
O Milagre é um dos acertos cinematográficos da Netflix em 2022. Com uma excelente Florence Pugh como guia, a produção nos mergulha em um cenário de necessidade e fé. E nos convida a refletir sobre os limites da crença e os interesses por trás dela. Separar o milagre da realidade e dos muitos interesses nada sagrados em torno dele.
O Milagre (The Wonder)
2022 - Irlanda/Reino Unido/EUA - 108min
Drama, Suspense
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