Nossa jornada começa quando o veterano de guerra, Atticus (Jonathan Majors) sai em busca de seu pai desaparecido, na companhia do tio George (Courtney B. Vance) e da amiga de infância Letitia (Jurnee Smollett). É a partir daí que ele entra em contato com um universo que só deveria existir na ficção. E que apesar de repleto de monstros, tem nos humanos sua mais assustadora ameaça.
O resultado é um formato que em momentos soa como uma antologia, com a série se reinventando à cada episódio, uma semana casa assombrada, na seguinte caça ao tesouro, viagem no tempo, e por aí vai. Fotografia e trilha sonora, acompanha e criam o clima das mudanças. Embora, sempre mantendo o foco na família de Atticus, e conectando estas histórias como consequências da primeira aventura, o encontro com os Braithwhite e sua magia. São vários contos, dentro de um grande livro.
É por isso também que os maiores monstros em cena não são aqueles com tentáculos e dezenas de olhos, mas os suprematistas brancos. Seu lugar de poder e privilégio, que lhes dava permissão para fazer o que bem entendessem com os negros. Se no universo de Atticus e companhia, os monstros de Lovecraft são reais, no nosso mundo, os monstros deles Lovecraft Country são reais, e tiram vidas negras todos os dias.
Reais também são os personagens com quais devemos nos identificar. Fugindo de estereótipos geralmente atrelado a personagens negros no cinema, e com arcos complexos até para coadjuvantes. Montrose (Michael Kenneth Williams), precisa lidar com seu passado violento, a relação conturbada com o filho, e com o conflito de ser um homem negro gay, nos segregados anos 50. Já Hippólyta (Aunjanue Ellis), deixa de ser a esposa e mãe submissa que contém seus sonhos, para ser o que desejar, literalmente.
Cabe aos co-protagonistas (pois sim, Leti também é protagonista), a guerra pelo bem maior, batalha a batalha. Culminando em uma jornada de sacrifício para ambos. O literal com direito a referências bíblicas para Atticus. E o mais comum e real para Letitia, criar sozinha um filho.
E já que estamos falando de protagonismo feminino. Sim, o herói da sinopse é um homem, mas as mulheres carregam a trama. Estão em maior número em cena (inclua aqui a mudança proposital de gênero de dois personagens masculinos no livro), e representam o legado e a ancestralidade. É através da mãe, que o legado é passado, e isso dá brecha para as moças mostrarem uma força em cena, que em outras produções seria contida ou relegada à personagens masculinos. Christina Braithwhite (Abbey Lee), é quem mais cresce com a mudança, no livro ela é Caleb. Ganhando camadas e ambiguidade, que a tornam mais interessante.
O elenco não apenas é eficiente, mas parece estar ciente do peso da mensagem que a série pretende passar, e por isso mais engajado. O resultado é uma entrega grande e acertada de cada um deles. Os destaques ficam por conta de Michael Kenneth Williams, que confere bem as muitas camadas do pai do protagonista, levando-o do desprezável ao admirável. E com Jurnee Smollett, que consegue oscilar entre as muitas emoções de Leti com uma intensidade surpreendente.
Entretanto, nenhuma série é perfeita. Lovecraft Country tem sim seus problemas. O episódio final, corrido e mais previsível destoa um pouco dos anteriores, mas consegue amarrar pontas soltas sem fechar portas para possíveis continuações. Outro problema também notado neste episódio, foi a frágil conexão de Ji-Ah (Jamie Chung) com a trama principal. Excelente em seu episódio solo, e para a construção do caráter de Atticus, a aparição posterior da moça parece apenas cumprir tabela.
Também complicada foi a representação de Yahima (Monique Candelaria). A aparição da personagem tinha intenção de fazer crítica ao tratamento dado aos nativos americanos no audiovisual. Mas pouco trabalhado, mais repetiu do que criticou a forma descartável como são tratados. A intenção era boa, mas não funcionou.
Essas falhas, no entanto, são pouco diante da qualidade e importância da obra como um todo. Lovecraft Country, é uma série bem construída e executada, que mistura de forma impecável terror, fantasia, ficção científica e crítica social. Critica que além de contundente e bem feita, veio no momento exato em que era necessária.
É provavelmente a melhor série de 2020, e ainda lembra que, tudo bem que para apreciar obras de cunho e autores controversos hoje em dia. E nem é preciso sempre criar uma nova versão dela para tal. Basta consumir com olhar crítico e consciência dos problemas inerentes a ela. Mas que bom que é possível construir novas versões, ricas, críticas e empolgantes de vez em quando.
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