O Agente Secreto

Atrasei um pouco mais que o normal a escrita desta crítica. Isso porque eu precisava de mais tempo para compreender meus sentimentos conflitantes em relação a mais recente - e badalada - obra de Kleber Mendonça Filho. Pois ao mesmo tempo que encontrei um  filme complexo, cheio de críticas e metáforas, ainda saí da sala com um sentimento de desagrado e incompletude. Acontece, que esse é provavelmente o sentimento que o doretor pretende evocar na audiência. Como e porque, O Agente Secreto faz isso, é o que eu humildemente tentarei compreender ao longo desta resenha. 

Mas, antes de mais nada, do que se trata esse filme? Muita coisa. O ano é 1977, em plena ditadura militar brasileira. E acompanhamos Marcelo, na verdade Armando (Wagner Moura) visivelmente em fuga, de volta para Recife, onde pretende reencontrar o filho pequeno, e então ir para algum lugar seguro viver com ele. O que ele vai descobrir eventualmente é que está com sua cabeça à prêmio, então essa fuga se tornará ainda mais urgente.

Entretanto, jornada de Marcelo/Armando, na verdade, é mais um fio condutor. Um meio para Kleber Mendonça criar e apresentar um panorama muito maior. A vida cotidiana em um regime ditatorial, longe dos grandes nomes, eventos, e batalhas. Onde, muitas outras histórias nunca foram contadas antes de serem completamente esquecidas. 

Cada um dos personagens em cena poderia protagonizar seu próprio filme. Desde aqueles com problemas diretos com a ditadura, passando por quem se apoia e, principalmente, se beneficia com ela, até aqueles que apenas existem nesse cenário opressor, decadente, e de profundo descaso com a população.

Assim entremeando a história do protagonista, vêmos pequenos fragmentos de outras vidas na época. Desde um assalto que deu errado, resultando em um cadaver ignorado por dias pelas autoridades. Passando pelo mistério de uma perna engolida por um tubarão, que alimenta de lendas uma imprensa que não pode falar verdades. Até, a maravilhosa Dona Sebastiana (Tânia Maria, roubando a cena sempre que aparece) que comanda um condomínio repleto de refugiados de todos os tipos. Esta, merecia um filme só dela. 

Todas as histórias contadas em fragmentos, deixando aquele gostinho de "quero mais". O mesmo vale para a trama principal, iniciada já em fuga e incerrada abruptamente. E na qual detalhes são contadas de forma econômica, ou mesmo através de "códigos". Incompletude que pode incomodar quem espera relatos complexos, tramas redondinhas. Mas que emula muito bem como a ditadura censurou e podou, não apenas as histórias, mas as vidas. 

Essa limitação narrativa criada pelo cenário político, não apenas é proposital como explicita. Quando uma segunda linha do tempo nos revela que, na verdade, estamos acompanhando, junto com Flávia (Laura Lufési) relatos inacabados de uma perspectiva muito distânte, em um cenário social diferente, mas que ainda sim foi formado por esse passado, e onde algum tipo de censura ainda se faz presente, quando verdades desconfortáveis começam a vir à tona. 

Assim, O Agente Secreto traz uma perspectiva completamente nova sobre um período histórico bastante retratado. Contando histórias isoladas da grande "História" aquelas dos livros de escola, assim como já acontece com a Segunda Guerra mundial. Apresentando anônimos, que morreram ou sobreviveram nesses grandes eventos estrelados por outros. 

Por outro lado, um elemento que não isolado que o diretor faz questão de mostrar aqui de forma direta é a corrupção sistemática da ditadura. Beneficiando não apenas seus líderes militares (nunca mostrados, mas sempre presentes através de símbolos), mas também seus aliados de uma elite abastada e sem escrúpulos. Uma denuncia direta para calar aqueles que ainda não entendem que esses casos não eram conhecidos por causa da censura, e que ainda fantasia com os supostos tempos áureos desse governo.

E que apesar da democracia vigente, ainda ecoa e se repete em alguns momentos. Como o caso onde o delegado Euclides (Robério Diógenes, excelente) protege uma "patroa" que negligenciou a filha de uma empregada deixada com ela para que a mãe pudesse fazer um serviço, e morta por sua falta de empatia. Assim como o caso Miguel, morto por ser deixado sozinho em um elevador pela patroa da mãe em 2020. Ou ainda quando este mesmo delegado exalta um alfaiate que acredita ser um herói da Segunda Guerra, leia-se um nazista, mas é sequer incapaz de compreender que Hans (Udo Kier) é na verdade um judeu, uma vítima da crueldade de seus ídolos. 

Para contar tantas histórias, e fazer tantas críticas em apenas um filme, ainda que bastante longo, O Agente Secreto conta com dois elementos essessiais. Excelentes atuações, encabeçadas por um trabalho minuncioso de Wagner Moura que mostra como uma pessoa comum de bons princípios, reage ao se encontrar em meio à uma caçada inesperada. Ele não é um revolucionário, nem um opositor do regime, é apenas um professor que discordou de alguém beneficiado por ele. E agora precisa agir e viver em segredo e constante alerta para escapar. 

Outro ponto crucial para a narrativa é a reconstrução de época impecável, que evoca memórias nos mais velhos, e cria um Brasil completamente distinto para os mais jovens. E Kleber Mendonça Filho faz isso não apenas com cenários, figurinos e caracterização, mas com temas e referências. Da burocracia de documentos, e da dificuldade de comunicação que parece engraçada aos olhos de quem vive em 2025. Até referências ao cinema, como os vários acenos à Tubarão de Spilberg e seu poder no imaginário coletivo. 

O Agente Secreto é sim tudo que tem-se alardeado sobre ele até agora. Rico, complexo, "absolute cinema", fraz críticas, denúncias, motiva discussoes e reflexões com uma narrativa bem pensada e construída. Mas, também é longo, com narrativa e final nada convencionais. E para o público geral desavisado, que encarar uma sessão apenas por que está em alta, o que é complexo, pode se tornar complicado e inacessível. 

Não é um filme fácil de acompanhar e digerir. Difícil inclusive de vender para as massas. Como explicar múltiplas histórias fragmentadas, e um final propositalmente incompleto e incômodo? Elementos que podem gerar os sentimentos confusos, que mencionei no início desta crítica. E até certa frustação pela falta de recompensa, leia-se um desfecho mais direto. Mas para quem estiver não apenas disposto, mais preparado, será uma experiência única que vale seu ingresso.  

O Agente Secreto
2025 - Brasil - 158min
Drama, Suspense, Policial

Post a Comment

Postagem Anterior Próxima Postagem