Coringa

Embora haja uma fórmula mágica adotada à exaustão para levar as aventuras dos gibis para as telas, "Filmes de quadrinhos" não são exatamente um gênero, ou mesmo subgênero. Quando uma produção corajosa percebe isso, e escolhe abordar estas adaptações com novos pontos de vista é praticamente inevitável se destacar. Coringa é um destes felizes exemplos, um drama sobre as consequências do desamparo da sociedade aos mais necessitados, que também é a origem de um dos mais icônicos vilões das HQs.

Na decadente Gotham, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) ganha a vida como palhaço enquanto tenta uma carreira de comediante e cuida da mãe idosa. Preso em um ciclo de fracassos, tanto por sua condição mental, quanto pela sociedade decadente em que está inserido, à certa altura ele percebe ser a grande piada. A partir daí, passa a abraçar seus desejos e pensamentos mais extremos, suas ações refletem na sociedade de forma caótica e desastrosa.

De todos os personagens das HQs, o Coringa é provavelmente aquele que mais permite brincar com suas origens, graças à sua natureza caótica e imprevisível. Dito isso, vale apontar, não há uma história específica por trás desta adaptação. Esta história de origem é um quebra cabeças de características, ideias e momentos que o personagem tivera ao longo dos anos, abordados com uma estética realista, e violenta, que faz referência à produções dos anos de 1970, muitas delas de Martin Scorcese. O Rei da Comédia e Táxi Driver, são as referências mais claras. O segundo, inclusive bastante evidente através da estética suja de Gotham, escolha de cores e fotografia. Mas também há vislumbres de Um Estranho no Ninho e Laranja Mecânica, citando apenas os mais conhecidos.

A intenção é retratar o Palhaço do Crime sem as amarras ou restrições ao seu potencial caótico, que versões anteriores precisaram seguir (a classificação indicativa no Brasil, é 16 anos). O resultado é um estudo de personagem complexo e bem construído, que leva em consideração não apenas seus dramas pessoais e psicológicos, mas a influência das mazelas da sociedade nele e vice-versa. Aqui a produção abre espaço para discussão política, desigualdade social, luta de classes, descaso das autoridades, busca por liderança e exemplo.

Este último, o motivo das maiores críticas à produção. Ao tornar o protagonista e sua forma violenta de agir como exemplo de protesto e mudança, contra injustiças também presentes na vida real, o longa fora acusado de exaltar a violência e incitar atos semelhantes. Particularmente, acredito que a intenção seja exatamente a oposta, nos fazer discutir o tema. Fica a dúvida se o grande público vai estar disposto à pensar sobre o que viu. Ou se seria preciso determinar com mais clareza o "mau exemplo" que é o modus operante de Fleck, e que custos isto teria à produção como forma de arte. O limite entre apologia e crítica passam pela compreensão de quem recebe a obra. Não é uma discussão nova, já estava presente nos já mencionados Laranja Mecanica e Táxi Driver, e vai continuar por mais alguns anos.

De volta ao complexo estudo de personagem, nada surtiria o mesmo efeito (nem mesmo a polêmica discussão acima) não houvesse uma interpretação que abrangesse todas as sutilezas de Artur Fleck. Desde a sua frágil posição no sistema, passando pelos momentos de delírio, choque, catarse e o consequente nascimento do Coringa. Joaquin Phoenix se entrega a todos estes estágios, e as oscilações entre eles com maestria. Desde a voz suave e frágil, à risada contundente, incontrolável e desconfortável, a composição considera aspectos físicos e principalmente psicológicos com um intensidade que chega ser desgastante até para quem apena assiste.

Se sofremos com ele, também nos deliciamos mesmo que incômoda e momentaneamente com sua libertação. Em especial em uma cena em que o personagem desce uma escadaria realizado e feliz, abraçando sua descida, literal e metafórica, ao mundo do caos e crime. Também nos sentimos culpados, por perceber uma ponta de aprovamento por suas ações. Estamos torcendo por ele, e sua luta contra a opressão, mas é errado.

Servindo de apoio para toda esta construção, o elenco traz ainda Zazie Beetz, Frances Conroy e Brett Cullen. Com destaque a atuação acertada de Robert De Niro, como o carismático e comunicativo apresentador de TV Murray Franklin.

A direção de arte e a fotografia situam bem tanto o período em que a trama se passa, final dos anos 70, inicio dos 80, talvez, como a decadência de Gotham. Assim como o figurino que ainda brinca com as cores características do personagem. Já a trilha sonora, traz canções conhecidas que ressaltam a melancolia, confusão e loucura da vida do palhaço.

Há ainda tempo, para esclarecer a importância do personagem na vida do Batman. Embora não haja aparições do herói, ou de qualquer outro mocinho ou vilão da DC. É a história do Coringa, apenas ele, sem amarras com outros personagens ou o universo da DC. E isto é mais que suficiente.

Assumida e propositalmente violento, sombrio e melancólico, Coringa é um estudo de personagem. Um drama sobre um homem com uma condição psicológica desamparado tanto pelo estado, quanto por aqueles que o cercam. Um filme tão interessante e intenso, quanto desconfortável (novamente propositalmente), que por acaso tem como protagonista um dos mais adorados vilões das HQs, da história. O olhar da indústria com relação à estes personagens parece estar amadurecendo, e descobrindo que suas adaptações podem ser muito mais que um mero "filme de quadrinhos".

Coringa (Joker)
2019 - EUA/Canadá - 121min
Drama

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