A Meia-Irmã Feia

Cinderela é provavelmente o conto de fadas mais adaptado para as telas na história do cinema. Já vimos versões da princesa animada, realista, futurista, contemporânea, em versão terror, comédia, fantasia, musical... Mas, poucas foram as vezes em que a perspectiva deixou de lado a princesa para mostrar a versão de outros personagens da história. É isso que A Meia-Irmã Feia propõe, seguir a filha da madrasta má, ao mesmo tempo em que faz uma critica social contundente em um body horror marcante.

Elvira (Lea Myren) chega com a mãe Rebekka (Ane Dahl Torp) e a irmã Alma (Flo Fagerli) no castelo de seu novo padrasto. Ele morre logo após o casamento, deixando o trio e sua filha legítima Agnes (Thea Sofie Loch Næss) com nada além de dívidas. A oportunidade de resolver seus probelmas financeiros vem quando, o príncipe anuncia um baile para escolher sua nova noiva. Já que sua irmã é jovem demais para casar, fica à cargo de Elvira conquistar o herdeiro do trono. O problema é que ela não é a mais bela das donzelas. 

É aí que o filme explora sua crítica social. Com discussões semelhantes aquelas vistas em A Substância, mas agora em um cenário completamente novo. E colocando jovens na busca pela perfeição, afinal não é apenas a idade que a sociedade rejeita, mas qualquer um que não esteja dentro dos padrões. 

Elvira fará todo tipo de procedimento estético intrusivo para alcançar uma beleza digna - pelos olhos da sociedade - de receber afeto e atenção, especialmente do sexo oposto. Coisa, que Agnes tem de sobra sem esforço. A jornada da Cinderela aqui também tem uma pitada de realidade, mas desenvolverei mais para frente neste texto. 

De volta à protagonista, em se tratando de um terror corporal acompanharemos cada tortura e mutilação a qual a moça se submete. Todas versões mais cruéis, já que "naquela época" as práticas médicas eram mais primitivas, de procedimentos que de fato nos submetemos da vida real. Cirurgias plásticas, extensões de cílios, medicamentos milagrosos para emagrecer, temos tudo isso hoje. E para pessoas do futuro, nossas versões dessas práticas soarão tão brutais, quanto as que a personagem encara. 

Junto com a tortura física, vem a psiológica. A pressão de se excaixar em um modelo, e a competição com outras garotas, muito bem exemplificada pelo ambiente das aulas de balet e etiqueta. Você não apenas precisa ser perfeita, mas melhor que todas as outras. Colocando essas jovens em um eterno estado de rivalidade. Tudo isso para receber valor, atenção e principalmente afeto, por mais falso que este último possa ser, diante de tantas condições. 

Já o olhar para a Cinderela aqui é menor, óbvio esse filme não é dela, mas, ainda sim, interessante. Agnes não é tão ingênua, pura e livre de amarras. Visualmente ela é perfeita sim, mas tem falhas, desejos e bagagem que suas outras versões não tem. E mesmo o fator mágico de sua trasnformação é afetado pelo horror daquele mundo, com seu belo vestido sendo costurado por vermes do cadaver de seu pai. 

Já a madrasta, assim como as outras mulheres mais velhas, são o reflexo da sociedade. Exige e pune, entregando migalhas, ou mesmo nada em retribuição. É a outra meia irmã o ponto de sanidade nessa loucura. Ciente dos absurdos a que as moças são submetidas, e fugindo astutamente disso, é o olhar dela que vai questionar e criticar as escolhas da irmã ao longo da jornada. 

A diretora e também roteirista Emilie Blichfeldt conta essa história com um tom mais realista. Sim, existe abóboras se tornando carruagens sim, mas o que de fato vêmos se assemelha mais com a realidade, sem a magia das fábulas infantis. É esse realismo que torna as sequencias de horror corporal mais impactantes, mesmo quando não são tão explícitas ou sanguinolentas. É tudo horrível porque parece real. Ainda que muitos desses procedimentos, aliás a maioria, não existisse no período. 

Assim, vêmos Agnes ficar perfeita às duras penas e ainda sim não ser suficiente. Mesmo depois de mudar tudo que pôde imaginar, uma nova exigência impossível é feita para se encaixar no padrão. Aqui representada pelos minúsculos sapatos da Cinderela. A mensagem? Não importa o quanto se esforce, para a grande maioria, as exigências da sociedade serão inalcançaveis. E isso não é por acaso.

A Meia-Irmã Feia é sim A Substância dos contos de fada. Reimagina o clássico para fazer críticas similares. A diferença é que não se trata de envelhecimento, mas de padrões impossíveis para todas. E assim como o filme aclamado com Demi More, usa o horror e o choque para fixar essas críticas. Para quem gosta de body horror é um deleite. Para quem curte contos de fada, um bem vindo novo olhar. Só não sei se o segundo grupo estará preparado para a visceralidade da busca pela beleza aqui. 

A Meia-Irmã Feia (Den stygge stesøsteren)
2025 - Noruega/Polônia/Suécia/Dinamarca - 109min
Horror corporal, Drama, Sátira

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