Pobres Criaturas

Caso você ainda não conheça nenhuma obra do cineasta grego Yorgos Lanthimos, vale avisar, ele não tem receio de subverter, questionar e principalmente incomodar. Mas, ao menos em Pobres Criaturas, sua visão crítica é mais direta e de previsões otimistas na alegoria com a nossa sociedade e seu futuro. 

Bella Baxter (Emma Stone) é um experimento criado pelo doutor Godwin Baxter (Willem Dafoe), cujos métodos não ortodoxos desafiam a ética. Uma criatura literalmente nova, ainda descobrindo o mundo a moça, encara uma jornada de amadurecimento através do corpo e da sexualidade de forma que a sociedade vitoriana em que vive (e provavelmente a nossa também) nunca permitiria à mulheres nascidas e criadas de "forma tradicional".

A sinopse acima é o máximo que posso dizer sobre o longa, sem estragar a experiência de quem chegou a esta resenha antes de ver o filme. Uma vez que descobrir o mundo de Bella ao mesmo tempo que ela, e através de seus olhos é parte da construção do universo em que a história se passa. 

E por falar neste universo, a direção de arte, fotografia, figurino e maquiagem que o constroem, são os elementos que imediatamente saltam aos olhos.  Criando um mundo fabulesco, mas ainda relacionado ao nosso mundo, para justificar a existência de nossos hábitos e preconceitos que tentam limitar a protagonista. Entretanto, aos olhos de Bella, as cidades tem cores fortes, céus pintados à óleo, bondes flutuantes e escadarias gigantescas. Em contraste com a vida claustrofóbica e em preto e branco da casa de seu criador. E tudo tem ângulos e posicionamentos de câmera pouco naturais, para nos lembrar constantemente da singularidade desta realidade.

 

Singularidade esta que bebe na fonte de Frankenstein de Mary Shelley, especialmente quando aborda o doutor que deu vida à protagonista. O personagem de Willem Dafoe é nada sutilmente chamado por ela de God, Deus em inglês, mas também apelido de Godwin. Muito além de criador o médico é também (e talvez muito mais) criatura, levando seus traumas para seu trabalho, e definindo a forma como o personagem lida com a ética. Tarefa que Dafoe entrega com eficiência, em uma atuação precisa. 

Preciso também é o trabalho de Emma Stone que define claramente os estágios da evolução do experimento, da criatura inocente, cambaleante e monossilábica, à mulher articulada, perspicaz e determinada que encerra o filme. Além da complexidade psicológica de um indivíduo em formação, atriz encara corajosamente a liberdade de Bella com o próprio corpo, em todos os aspectos. Entretanto é o aspecto sexual que chama atenção, já que a trama alia seu crescimento pessoal ao sexo. 

 
Conforme Bella descobre seu corpo, e sua sexualidade, seu intelecto avança. Quanto mais ativa, mais inteligente e menos ingênua. Quanto mais liberta dos pudores das sociedade e mais consciente destes atos, menos os personagens antes fascinados por ela a aceitam, e mais desejam controlá-la. A crítica ao patriarcado aqui é clara: os homens querem mulheres submissas, que acompanhem e atendam seus anseios, mas não representem ameaça intelectual a sua "soberania". 

É a forma com que Lanthimos resolve reforçar essa mensagem que pode incomodar muitos. Ele ele o faz com uma quantidade absurda de cenas de sexo. Vale ressaltar, não há pudores nessa crítica, não sou do tipo que não vê função em tais cenas. Pelo contrário, quando bem situadas falam muito, e podem desenvolver personagens e narrativa. Mas a repetição constante, mesmo quando a mensagem já foi bem transmitida, exige uma exposição desnecessária do elenco (especialmente de Stone, nesse caso), e beira o fetiche.

Particularmente o excesso me incomodou, ao me tirar do filme: ok, entendi, e como segue a história a partir dali? - Talvez o mesmo não aconteça com você, e seu aproveitamento do filme seja melhor por isso. 

Exageros à parte, Pobres Criaturas ainda conta com outras qualidades como o elenco que abraça os absurdos daquele mundo. Mark Ruffalo, Ramy Youssef e Margaret Qualley complementam as abordagens corajosas de Dafoe e Stone, enquanto compõem personagens que funcionam naquele universo, e ainda mantém suas particularidades. 

Além de um ritmo bem cadenciado, que distribui bem os diversos temas embutidos no enredo, ética, evolução, libertação, livre arbítrio, assim como os pequenos arcos dos personagens secundários em paralelo à protagonista. A produção ainda costura bem drama e humor, usando os de forma equilibrada e complementar. Enquanto a trilha sonora de Jerskin Fendrix, propositalmente esquisita e incômoda, emoldura o tom e as emoções da produção. 

Baseado no livro homônimo de Alasdair Grey, Pobres Criaturas é uma jornada de amadurecimento sem filtros e limites. Que em sua liberdade, questiona e subverte as normas e códigos da sociedade, divertindo e incomodando na mesma medida. Apesar de um excesso ou outro, Lanthimos entrega mais um filme deliciosamente esquisito, pra alegria de quem embarca, e desgosto de quem não consegue ter a mesma liberdade de julgamento que Bella Baxter. 

Pobres Criaturas (Poor Things)
2023 - EUA, Reino Unido - 141min
Comédia, Drama, Romance

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