A Sociedade da Neve

Sobreviver a uma queda de avião é tão raro que facilmente pode ser considerado um milagre. Então, sobreviver também há 72 dias em um ambiente inóspito, lidando com feridas emocionais, físicas e dilemas morais é um evento ainda mais extraordinário. Por isso, a história do voo 571 da Força Aérea Uruguaia é tão fascinante quanto aterrorizante. A Sociedade da Neve, o mais recente dos muitos relatos cinematográficos dessa história disponível na Netflix, é provavelmente a obra que mais imerge o espectador tanto na tragédia, quanto em seu aspecto milagroso.

Fretado para levar um time uruguaio de rúgbi ao Chile em Outubro de 1972, o avião sofreu um catastrófico acidente enquanto sobrevoava a cordilheira dos andes. Dos 45 passageiros e tripulantes, 29 sobreviveram à queda, mas apenas 16 foram resgatados mais de dois meses depois. É esse período de sobrevivência extrema que o filme de J.A. Bayona pretende não apenas relatar ao público, mas fazê-lo sentir. 

Imersão que já começa nos primeiros minutos. Após uma introdução muito breve ao grupo, a produção já embarca no voo e consequentemente no acidente. Filmado de forma extremamente realista e agoniante. Existe um certo respeito prestado às vítimas quando se relata histórias reais, que por vezes higienizam a catástrofe. Bayona consegue manter esse respeito, mas pela primeira vez mostrando a dura realidade dos momentos da queda, com os ocupantes da aeronave sofrendo todos os efeitos do acidente. A empatia é imediata, e a reação ao assistir é do mais puro pavor e desespero, mesmo para aqueles que conhecem o desfecho da história. Mas isso é apenas o início, de uma jornada de mais de duas horas de projeção. 

A longa duração do filme é o único fator realmente questionável. Em termos de narrativa, algumas economias e cortes poderiam ter sido feitos, para dar um ritmo melhor à trama. Por outro lado, os momentos estendidos, e alguns até arrastados, ampliam no espectador a sensação de cansaço e agonia para que a jornada finalmente chegue ao fim. Se mal conseguimos observar por pouco mais de duas horas, o terror de imaginar aqueles homens presos por mais dois meses é ainda maior. 

Mostrando que a escolha por manter a história mais longa, pode ser proposital e não uma falha. Tanto, que mesmo diante de tanta dificuldade e sofrimento, o diretor ainda consegue incluir momentos de alívio, descontração e esperança. Sem os quais suportar tal desafio seria impossível.

E se a apresentação e o impacto da aeronave ocupam apenas a primeira meia hora do filme, passamos as próximas duas horas, observando, torcendo e sofrendo ao lado daquelas pessoas. A esperança pelo resgate, a perda dela, os esforços para suportar ao frio, para tratar dos feridos, e finalmente suportar a fome. Tema que esbarra em um tabu, que o diretor consegue não transformar em espetáculo, ao optar por realmente discuti-lo. 

Para quem não conhece a história, e ainda não se deu conta, não havia alimentos disponíveis para 72 dias de espera. À certa altura, a única opção encontrada pelos sobreviventes para continuar vivos era consumir a carne dos mortos. Ato impensável não apenas em condições normais, mas mesmo em condições extremas como aquela. O grupo pensou, repensou e discutiu muito a solução do canibalismo. Criando um novo acordo social, como única forma de suportar a ideia, sendo libertos de julgamentos, tentando lidar com crenças e culpa, e por fim dando permissão aos companheiros de usar seu corpo caso viessem a falecer primeiro. 

Um pacto agravado ainda mais pelo fato, de que todos em questão, mortos e vivos se conheciam. A Sociedade da Neve também mostra o torpor que a situação gera nos envolvidos. Conforme o tempo passa e a situação se mantém, o que antes era um ato impensável, torna-se parte do cotidiano. Não pensar, ficar dormente à situação, foi mais uma necessidade inerente à sobrevivência. 

Outra necessidade foi buscar uma saída, uma vez que eles tinham ciência que não estavam mais sendo procurados. Trabalho que exigiu esforço físico e mental, que eles já não tinham, e que só foi alcançado pela abnegação do grupo. Todos por todos, a compreensão de que não conseguiriam sobreviver sozinhos foi o que os manteve vivos.

Bayona expõe todos esses estágios usando uma fotografia bastante versátil e inventiva. Explorando lentes, exposições e posicionamentos de câmera distintos para expressar o sentimento de cada momento. Desde a vastidão que faz os homens desaparecerem em meio à neve, até os closes no desespero da luta para sobreviver a ela, quando os rapazes são soterrados. 

Os efeitos especiais, maquiagem e reconstrução de época são extremamente eficientes. Tanto para construir momentos complexos e extremos como o impacto do avião, quanto para momentos mais contemplativos, como quando o filme recria imagens reais dos sobreviventes ao sol do lado do que restou da fuselagem. 

Outro dos raros aspectos da produção que podem ser questionados, é a apresentação dos personagens. Bastante curta, não decoramos de fato nos nomes dos sobreviventes, à excessão de Numa (Enzo Vogrincic) que narra a história,  Parrado e Canessa (Agustín Pardella e Matías Recalt) que encaram a jornada para buscar o resgate. O que não dificulta em nada nossa empatia com o grupo. Talvez a intenção seja tornar rapazes uma unidade. Nos fazendo torcer por todos, não por alguém específico. E tornando cada um deles essencial para a sobrevivência. Mas eu gostaria de saber um pouco mais sobre eles.

Por outro lado, o filme presta homenagem e apresenta todos que não sobreviveram. Revelando seus nomes e idades ao longo da projeção. Não nos deixando nunca esquecer que a obra é uma homenagem, e presta respeito à todos os envolvidos. 

Baseado no livro homônimo de Pablo Vierci, a produção espanhola, ainda conta com um elenco pouco conhecido do público, ao menos fora da Espanha. O que, somado às excelentes atuações, potencializa a veracidade do filme. Sem "famosos" em cena, é muito mais fácil acreditar que se tratam das vitimas reais, e por instantes esquecer que se trata de uma encenação.  Encenação muito bem conduzida por Bayona. Não é a primeira vez, que o diretor desperta esse tipo de sentimentos no público, ele também dirigiu O Imposível, que acompanha uma família no tsunami tailandês de 2004.

Tragédia ou milagre, o acidente do voo 571 da Força Aérea Uruguaia é os dois, e muito mais que isso. A Sociedade da Neve aponta todos os aspectos da difícil experiência. Nos apresentando o pior, mas também nos deixando com o melhor que as pessoas podem realizar nessas condições, e o resultado disso, a vida! Um filme excelente e extremamente difícil de assistir. 

A Sociedade da Neve (La sociedad de la nieve) 
2023 - Espanha - 144min
Drama

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