Entre Mulheres

À primeira vista, Entre Mulheres parece um drama de época, com temas bastante localizados e específicos. Não demora muito para essas características se mostrarem meras aparências, tanto no aspecto mais direto, quanto nos temas e discussões que esse grupo de mulheres debate. 

Mulheres de uma isolada comunidade religiosa, se reúnem para, pela primeira vez, decidir seu futuro. Perdoar os homens que doparam e violentaram dezenas delas, ficar e lutar para melhorar sua condição de vida, ou partir para uma nova vida sem as figuras masculinas que determinaram toda sua vida até ali existência até então. Na ausência dos homens elas finalmente podem expressar o que pensam e sentem, mas as amarras em que foram criadas ainda estão presentes, e vão tornar essa conversa ainda mais longa e complexa. 

Uma placa em uma carroça, um jeans tratado, uma caneta esferográfica... aos poucos Entre Mulheres vai nos revelando que essa comunidade antiquada na realidade não está situada num passado distante. Trata-se de uma daquelas comunidades religiosas fechadas para o mundo exterior, que abominam tecnologia e seguem uma religião rígida, geralmente patriarcal, e machista. Essas mulheres do século XXI, são impedidas de ler, ter opiniões e até seu merecimento ao céu ou inferno está condicionada aos homens. Danação eterna é o que prometem os anciãos para aquelas que não perdoarem seus agressores. 

A premissa de drama de época é a mais simples de derrubar. Mas complexo é perceber que os temas debatidos ali, são apenas uma versão amplificadas das dificuldades que as mulheres ainda enfrentam diariamente. Crenças religiosas e estruturas sociais que as colocam no papel de submissas, ou mesmo de propriedade, o abuso doméstico, a alegação de que homens tem instintos e necessidades diferentes, por isso seus impulsos deveriam ser relevados, ou até respeitados, e a necessidade de criar os filhos para que estes não se transformem em abusadores. Todas questões que ainda enfrentamos no cotidiano, em pleno ano 2023.

Perdão, luta ou fuga, são apenas as opções, o grupo de mulheres em questão vão debater todos estes temas. Ao mesmo tempo que tentam lidar com as crenças em que foram criadas, e o medo do novo. Não apenas do mundo novo, mas da novidade que é ter controle sobre a própria vida. 

Aliás, grupo de mulheres é apenas uma forma simples de ser referir a elas, já que cada uma tem sua individualidade, personalidade e anseios. E principalmente cada uma reage de forma diferente ao abuso. Desde a agressividade de Salome (Claire Foy muito longe da controlada postura que apresentava em The Crown), passando pela determinação temerosa de Mariche (Jessie Buckley), até o equilíbrio quase apático de Ona (Rooney Mara). Isso para falar apenas das mais eloquentes, há ainda quem sofra mais fisicamente como Mejal (Michelle McLeod) que sofre crises constantes, ou mesmo Melvin (August Winter) que se transformou completamente. 

Contando ainda com uma participação menor de Frances McDormand todo o elenco, entrega uma honestidade e visceralidade em suas longas discussões, que dispensam a violência para mostrar a intensidade dos ataques. Não precisamos ver as agressores, e vemos muito pouco das consequências imediatas delas, todo o horror e absurdo dos eventos está expresso na discussão. Esta por alguns momentos me fez pensar em Doze Homens e uma Sentença, especialmente quando o julgamento sobre os agressores se torna o foco da discussão. 

Única figura masculina em cena August (Ben Whishaw, contido e ciente do lugar de seu personagem em cena), um ex-excluido aceito de volta apenas por servir de ferramenta à comunidade, toma notas das reunião. E também serve de lembrete do que as moças podem estar perdendo ao não se submeter. Nem todos são agressores, alguns são pessoas que amam.

Baseado no livro homônimo de Miriam Toews, que por sua vez é inspirado em eventos reais ocorridos na colônia de Manitoba, na Bolívia, o filme dirigido por Sarah Polley desloca a comunidade a uma localização indefinida. A única referência é o idioma, ainda sim, ela consegue construir a sensação de que a história poderia se passar em qualquer lugar, ou seja próximo de qualquer um de nós. Completando o quadro, a fotografia dessaturada ao ponto do filme quase parecer em preto e branco em alguns momentos, amplia o sentimento de desesperança, melancolia e sofrimento. Aspectos que somados ao caso, e as personalidades de cada uma, torna impossível não se conectar, e torcer para que elas tomem a decisão correta. 

O título original Women Talking, literalmente significa "mulheres conversando", e não há descrição melhor desta produção. Conversa que é relevante tanto pelos temas, quanto pelo fato de estar ocorrendo. De finalmente as mulheres ganharem voz e opinião, ainda que apenas entre elas (pois é, ainda tem muito pra percorrer aí!). Conversas que, de forma incomodamente parecida, ainda hoje em dia são negadas, vozes silenciadas e opiniões ignoradas. Um filme necessário, que só não vê valor, aqueles que estiverem do mesmo lado dos membros masculinos daquela comunidade. 

Entre Mulheres (Women Talking)
2022 - EUA - 104min
Drama
 

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