Grandes mudanças geralmente causam estranhamento e afastamento em algumas pessoas. Sabendo disso A Mulher Rei ousa no cenário, personagens e temas, mas modera em sua forma para conseguir alcançar o grande público.
Com ares de épico histórico, o filme acompanha a luta das Agojie, um grupo de elite formado por guerreiras do reino de Daomé, por volta de 1823. Nanisca (Viola Davis) é sua líder, fortemente envolvida com as causas do reino e de seu rei Ghezo (John Boyega). O que inclui a tarefa de fortalecer o reino econômica e militarmente, e resolver os conflitos com o reino vizinho. Já Nawi (Thuso Mbedu) é uma das novatas no exército. Entregue pelos pais para se tornar uma guerreira, tem duas tarefas principais se provar merecedora da posição e apresentar para nós, o público, o mundo habitado por essas mulheres.
Apesar de oficialmente protagonizado por Viola Davis, A Mulher Rei traz um roteiro que não tem receios em dividir os holofotes. Primeiramente com Nawi, que assume um papel de co-protagonista, e em segundo plano com outras guerreiras, que tem sua personalidade e importância na tribo bem exploradas. Estes destaques ficam principalmente com Lashana Lynch e Sheila Atim, que completam um elenco repleto de boas atuações.
Praticamente uma força da natureza, Viola consegue imprimir em Nanisca tanto a ferocidade de uma guerreira sofrida e determinada, quanto a empatia de uma líder que se preocupa com suas subordinadas. Thuso Mbedu, no entanto, é a grande surpresa ou roubar a cena com sua jovem determinada e impetuosa que amadurece ao longo do processo. Lynch e Atim, oferecem força, opinião e imponência que dão à toda a equipe um tom quase mitológico.
Elevadas à quase mitos, a história das Agojie é contada aqui como uma fórmula bastante familiar à Hollywood. Comodidade que pode decepcionar alguns que esperavam mais ousadia no roteiro e desenvolvimento do projeto. Particularmente, acredito que a escolha seja estratégica, para conversar mais facilmente com o grande público, que já vai enfrentar outras mudanças significativas. Já que em seu conteúdo a produção realmente ouse, ao dar protagonismo à mulheres de comunidade africana do século XIX.
Longe dos papéis de empregados, escravizados, ou coadjuvantes que existem para cumprir a cota, o protagonismo aqui é negro e feminino. Barreiras bastante difíceis de serem superadas pela indústria acostumadas a rostos brancos e masculinos em épicos e filmes de ação como este. É nesta coragem de oferecer este espaço, e na capacidade de conseguir empolgar com ele que estão os méritos de A Mulher Rei.
Sim, empolgar! Não é por que a fórmula é batida, que não possa ser empolgante. Com personagens carismáticas, desafios e ação crescente, culminando em um clímax catártico contra os colonizadores europeus, é difícil não se engajar na luta dessas mulheres. Que são retratadas das formas heróicas mais tradicionais e facilmente reconhecíveis pelo público. Lutas fluidas, ângulos de câmera que engrandecem, obstáculos a serem superados e determinação constante, são heroínas admiráveis.
As cenas de ação não trazem coreografias mirabolantes ou inovadoras, mas são bem construídas. Além de transmitirem com eficiência toda a ferocidade e letalidade daquele exército. O mesmo vale para as sequencias de treinamento, mesmo quando curtos os desafios impostos às novatas exemplificam bem como estas mulheres se tornaram máquinas de combate tão eficientes. Tudo construído pelo bom trabalho da equipe de dublês, e das próprias atrizes que treinaram bastante para estarem à altura das capacidades de suas personagens.
O escorregão fica por conta de um ou outro desvio no roteiro, que tenta construir relações novelescas entre dois personagens, além de investir em um romance proibido, que sabemos que não dará em nada. São tramas paralelas, pensadas para humanizar e dar mais profundidade às personagens, mas não são essenciais à trama.
Outro ponto fraco está relacionado ao idioma, afinal o filme é falado em inglês em uma cultura que tinha idioma próprio. Prática bastante comum, mas que soa estranha, quando misturada com trechos do idioma local. O que fica mais evidente quando personagens "brasileiros" entram em cena, a miscelânea de idiomas confunde, e seus intérpretes que não dominam o idioma realmente se revelam. Porquê não escalaram atores que realmente falem português, é um mistério.
O idioma não é a única licença poética tomada pelo roteiro. Apesar de inspirado pelo Reino de Daomé e suas guerreiras (que também inspiraram as Dora Milaje de Pantera Negra), o filme não é historicamente preciso, ou baseado em eventos reais. Romanceando principalmente a posição do reino em relação ao comércio de escravos.
Fiel à história, ou não A Mulher Rei sabe muito bem que história pretende contar, e quais temas quer levantar à partir dela. Discutindo tanto temas heroicos tradicionais, como honra, determinação, vingança, quanto temas como representatividade, negritude, a força feminina. Tudo isso de forma direta e empolgante.
Já passava da hora de começarmos a ver o outro lado da história, dar voz aos esquecidos. É isso que A Mulher Rei pretende! Simples na fórmula, mas ousado no conteúdo, tenta conversar não apenas com aqueles que pela primeira vez são representados, mas também o com todos os outros que precisam conhecê-los.
A Mulher Rei (The Woman King)
2022 - EUA - 134min
Ação, Drama, Épico
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