Medida Provisória

Alguns filmes existem para escancarar verdades que se escondem bem à vista na sociedade. Chamar atenção, criticar e refletir sobre nossas mazelas de hoje, ontem e amanhã, é o que torna estas obras necessárias, independente até da perfeição em sua execução. Medida Provisória é uma dessas obras, que tal qual Corra ou The Handmaids Tale, te lembram que o incômodo que você tem ao assisti-las, deveria existir todo o tempo. E para muitas pessoas existe.

No Brasil, em um futuro não muito distante, uma medida provisória é criada com a desculpa de reparar o erro histórico da escravidão dos negros. A MP1888 pretende devolver os cidadãos com "melanina acentuada" à sua terra de origem a "África". É obvio, esta é na verdade, mais uma forma de extermínio da população afro descendente, levando ao extremo o racismo estrutural de nossa sociedade. 

Neste contexto acompanhamos o casal formado pela médica Capitu e o advogado Antônio (Taís Araújo e Alfred Enoch), e o primo dele, o jornalista sem papas na língua, André (Seu Jorge). Eles ficam presos em seu apartamento, protegidos pela lei que proíbe a invasão de residências. Enquanto ela, que estava nas ruas, tenta não ser capturada pelo governo, assim como muitos outros.

A partir daí acompanhamos o passo à passo da implementação e execução da medida, desde a falsa promessa de escolha da parte dos afetados, passando pela perda de direitos, recursos básicos, até a caça, captura e exílio forçado. É neste quesito que a produção se assemelha à The Handmaids Tale . Entretanto, diferente da série, o roteiro entrega esta execução de forma confusa e limitada. Só termos dimensão do que acontece no Rio de Janeiro, e vermos muito pouco destas consequências para além dos três personagens principais. Falta amplitude, cadência e ameaça constante, que cria uma crescente sensação de pavor em quem assiste. 


Felizmente, o elenco abraça a jornada de seus personagens, e confere a sensação de pavor e incredulidade que a história precisa. O destaque fica com Seu Jorge, que cada vez mais se mostra um excelente ator, ao dar vida ao desbocado e afrontoso André. Taís Araújo e Alfred Enoch também entregam com eficiência as muitas camadas de seus personagens. Embora ele ainda tenha umas escorregadelas em seu sotaque, que nos lembram de sua dupla nacionalidade exatamente no discurso em que ele defende sua brasilidade aos berros. 

O elenco ainda traz uma série de participações de artistas negros como, Tia Má, Emicida, Flávio Bauraqui, Luis Miranda, Jessica Ellen e Indira Nascimento. Aliás esta é a produção do cinema nacional com mais profissionais negros na frente a atrás das câmeras. É claro, atores brancos também ajudam a contar esta história. E neste caso é Adriana Esteves quem atiça nossa raiva e temor, como a responsável pela execução da medida na região que acompanhamos. 

Com dois núcleos bem definidos, o de Capitu e o de Antônio e André, acompanhamos duas vertentes da resistência. Aquela feita à vista de todos, e a feita às escondidas. A primeira tentando sobreviver, a segunda se preparando para lutar. Assim o longa consegue discutir as muitas visões da luta. A comunidade, o acolhimento, a luta histórica dos quilombos, que aqui ressurgem como afro-bunkers, uma referência ao afro-futurismo. E a batalha moderna, com visibilidade da mídia e impacto global. Em ambos os casos, questiona também os limites: até onde podemos ir antes de nos tornar tão bárbaros e criminosos quanto aqueles que nos atacam?

Ainda que tenha núcleos e tema bem definidos, o roteiro não escapa de perder o foco em alguns momentos e investir em discussões que não avançam. Como quando decide mostrar um pouco da chegada dos exilados em países africanos, mas logo abandona esta problemática. Quando tardiamente, e sem preparação, muda o propósito de um personagem branco. Ou ainda, quando aborda a repercussão da falta de insulina na vida de Antônio, sem que isso tenha consequências reais na trama. Outras falhas que podem incomodar alguns é a edição truncada em sequencias de fuga. E alguns close-ups, que na ânsia de exaltar as feições e a pele negra, se estendem um pouco mais do que o necessário para ter o efeito desejado. 

Pequenas falhas à parte, em sua estreia na direção, Lázaro Ramos tem bastante conhecimento da história que pretende contar, e o faz propositalmente sem sutilezas. Ciente do racismo estrutural da sociedade que receberá o longa, praticamente desenha as críticas e absurdos didaticamente para que até os mais obtusos tenham a possibilidade de entender, se quiserem. Vale mencionar, apesar de estarmos em um ponto da evolução social em que discutimos muito sobre racismo (e feminismo, homofobia, xenofobia, e outras pautas de minorias injustiçadas e ameaçadas), em ações parecemos estar retrocedendo. O racismo e outras formas de violência, saem do pensamento e viram ações com cada vez mais frequência e menos pudor. É deste mundo que Medida Provisória está muito ciente. 

É tentador pensar que a situação de Medida Provisória é apenas um exagero bem utilizado como alegoria crítica. Que nunca chegaremos a este ponto. Afinal, a parece impossível e insustentável a logística de "devolver para a África", para nossos países de origem que sequer conhecemos, já que nossa história fora apagada. É aí que as falas do personagem de seu Jorge ganham peso - "Como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar nesse ponto? Como é que a gente riu disso?" - Ok, não chegamos ao ponto de rir deste filme, mas não podemos cair na armadilha de acreditar na improbabilidade de um absurdo semelhante a este. 

Baseada na peça Namíbia, Não!, escrita por Aldri Anunciação, Medida Provisória não é  livre de falhas, mas é um bom filme. Uma bem vinda estreia de Lázaro Ramo na direção. É realista, crítico e direto, sabendo muito bem a história que pretende contar, e incomodando na medida certa. Não é perfeito, mas é mais importante que isso, é necessário!

Medida Provisória
2022 - Brasil - 103min
Drama

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