The Handmaid’s Tale

Nosso mundo não é perfeito, talvez por isso vivamos esquecendo: ele já foi pior e sempre pode voltar a ser. Basta apenas uma escolha errada. The Handmaid’s Tale é uma daquelas necessárias obras que vem para nos lembrar disso.

Nesta distopia passada em um futuro próximo de uma sociedade incomodamente muito parecida com a nossa, a humanidade passa por uma grave crise de fertilidade. Não demora muito para o medo da extinção criar o caos e uma nova ordem social se estabelecer nos Estados Unidos. A República de Gilead é um regime teocrático totalitarista, que reorganizou a sociedade em castas. Uma delas, as "Handmaids" (aias em português), é formada por mulheres comprovadamente férteis - leia-se que já tiveram filhos antes. Estas são designadas para as casas dos líderes governantes para gerar filhos para eles e suas esposas. 

É nesta situação que conhecemos a protagonista Offred, achou o nome estranho? Offred ="of Fred", literalmente "de Fred" em inglês, nome do comandante a que foi designada. Sim, nesta sociedade até mesmo os nomes destas mulheres foram retirados e elas não são as únicas em uma situação absurda.

Gradual e rapidamente, todos os direitos das mulheres são revogados, sem consulta, prévio aviso ou explicação, até o ponto em que elas passam a ser propriedade do estado. O que vemos através de bem colocados flashbacks de seu passado. Descobrimos também como o novo sistema foi implantado e a reação das diversas pessoas à ele. Desde aqueles que lutaram contra, até os que foram convencidos. Lavagem cerebral também está entre os temas, muitas das mulheres foram levadas a crer que seu novo "papel" é necessário para a humanidade, além de um dever divino. Técnicas de vigilância, controle e para evitar a união das "classes inferiores" também são mostradas em cena.


Mas a temática principal é mesmo o estupros ritualizados e mantido por lei, como ápice da exploração da mulher, mesmo as pertencentes às castas mais altas. As esposas dos comandantes também fazem parte do "ritual", e claro, não estão confortáveis com isso. Além da violência física, agressão moral e psicológica também são discutidas. As mulheres, não podem ter empregos, propriedades, ou mesmo ler. As aias não são mães dos bebês que geram, enquanto as esposas submissas ajudam seus maridos a terem filhos com outras, e criam as crianças posteriormente. E acima de tudo, são pessoas comuns que antes tinham trabalho, família, uma vida como a maioria de nós, o que torna todo o contexto uma realidade possível - e que existe sim de certa forma - fora das telas.

Apesar de levantar todas estas questões feministas The Handmaid’s Tale, não é uma série panfletária. O objetivo não é diminuir os homens, mas mostrar até onde uma sociedade pode chegar. E aliás já chegou em alguns momentos da história humana, e tem absurdos semelhantes ocorrendo no momento em que você lê este texto. O mundo totalitário e sexista da maternidade, é apenas uma das maneiras de que a humanidade pode "dar errado". E não é uma novidade, O Conto da Aia, livro de Margaret Atwood que inspirou a série foi lançado em 1985.

Nada disso no entanto teria impacto se a série não alcançasse a audiência coisa que ela consegue com uma bela construção de universo. O mindo de Gileard, é uma versão deliberadamente "atrasada" do nosso. A tecnologia existe, mas é limitada assim como a comunicação. As roupas são conservadoras tudo definido para supostamente criar um mundo "mais natural", que respeite o planeta e os preceitos desta religião extremista. O resultado é eventualmente nos surpreendermos ao ouvir a trilha sonora, cheia de clássicos modernos e percebermos que não se trata de uma produção de época. Jogando na cara do expectador novamente o fato de que esta realidade pode acontecer um dia.

 Essa construção também passa pelas cores. Uma fotografia desgastada e cheia de contra luz transforma aquele mundo em uma enorme pintura á óleo. Até o tom das roupas das mulheres tem seu propósito. Determinam seu papel naquele mundo e fazem um paralelo com figuras bíblicas. Enquanto os tons de azul e verde das esposas fazem alusão à virgem Maria, o vermelho das aias fazem paralelo com Maria Madalena. Além de as tornarem os elementos mais reconhecíveis e vívidos em cena, afinal são elas que trazem a vida. Mas vermelho também representa, agressividade, transgressão e desejo, muitas mensagens para apenas um figurino.

As atuações também chamam atenção, principalmente Elisabeth Moss. Conhecida por Mad Men, a atriz, vive uma protagonista bastante eloquente e articulada e cheia de opinião, mas que numa situação de repressão extrema, precisa - e consegue - transmitir tudo que pensa e sente através apenas de olhares, expressões e pequenos gestos. Samira Wiley (a Poussey de Orange is The New Black) que vive a melhor amiga de Offred, é eficiente mas tem um papel bastante parecido com que teve na série da Netflix. Yvonne Strahovski (Dexter, Chuck) acerta o viver a elegantemente contida Serena Joy, esposa do comandante da protagonista, que tem uma história muito mais densa que a fachada de "bela, recatada e do lar" demonstra. E por falar nele, o opressor chefe da casa é vivido por Joseph Fiennes.


A sempre excelente Ann Dowd (The Leftovers) continua intimidadora como a Aunt Lydia. A outra surpresa fica por conta de Alexis Bledel, a eterna Rory de Gilmore Girls, finalmente abandona os papéis de boa menina. Na pele de "Ofglen", não só encara seu trabalho mais denso e desafiador até então, como o faz muito bem. Basta dizer que à certa altura você esquece que ela já foi a Rory, pela primeira vez.

Falas inteligentes, e o bom ritmo do roteiro, apenas ajudam ao bom elenco entregar um trabalho intrigante e impactante. Não há como não parar para refletir a cada um dos dez episódios, ou ainda se preocupar com cada uma destas mulheres. Se a narrativa e as muitas discussões que a trama levanta não forem suficientes para você, o esmero visual ainda é um atrativo à parte, assim como a trilha sonora. The Handmaid’s Tale é uma das melhores surpresas televisivas do ano, e sua segunda temporada já foi confirmada. 

A parte ruim, é que a produção pertence a plataforma de streaming HULU, que não está disponível no Brasil. Mas este é um raro caso, em que encorajo as pessoas a assistirem, assim que puderem, como puderem. Além de excelente, a produção é um necessário lembrete de que o mundo pode "dar errado" a qualquer momento.

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