Independente da abordagem, cinebiografias precisam ter ciência de duas coisas. Por mais icônicos que seus retratados sejam, eles são mais complexos que um símbolo, e ninguém é obrigado a conhecer sua história. É nisso, que Senna, minissérie da Netflix sobre o maior piloto brasileiro da Fórmula 1, erra. Mas a falha não a torna um total desperdício.
Produzida com o apoio (e a interferência) da família Senna, a série retrata a vida de Ayrton (Gabriel Leone) desde suas primeiras voltas de kart no pátio da fábrica da família. Passando por diferentes modalidades de corridas automotivas, empasses profissionais e problemas pessoais, até o fatídico dia de sua morte na pista em 1994.
São trinta anos de uma vida muito movimentada para caber em apenas seis episódios. Logo não é surpresa, nem problema, que o roteiro precise, escolher os fatos que considera mais importantes para retratar. Entretanto, as escolhas aqui pecam em coerência. Especialmente quando se dividem entre vida pessoal e profissional.
À começar pela vida amorosa, já sabidamente influenciada pela família de Ayrton. O tempo dividido entre suas três principais parceiras, a primeira esposa, Xuxa e Adriane Galisteu (Alice Wegmann, Pâmela Tomé e Julia Foti), não corresponde ao tempo ou influencia que esses relacionamentos tiveram em sua vida. Mas, sim, à importância que terceiros deram à eles. E consequentemente com pouca ou nenhuma influência em outros aspectos de sua vida.
Esta luta seria talvez a mais importante, a busca por condições mais seguras para os pilotos, mas cujo início é omitido. Saltando de uma busca por regras mais justas e menos favoritismo em 1991, para questões de segurança em 1994, em embate direto com a organização da competição. Quando Senna despertou para isso? Quais eventos despertaram a necessidade nele? Toda a discussão parece resumida ao trágico fim de semana do Grande Prêmio de San Marino de 1994, em Ímola. No qual antes da morte de Senna, outros acidentes já haviam tirado a vida de Roland Ratzenberger (Lucca Messer) e colocado Rubens Barrichello (Joao Maestri) no hospital.
Ignorando indícios anteriores das condições precárias. E mesmo eventos chave para que despertaram a preocupação dos pilotos. Como o acidente de Erik Comas, salvo na pista com o auxílio de Senna, que deixou o próprio carro para ajudar o colega. O incidente que fez parte do período de tempo omitido da trama, é mencionado em uma linha de diálogo, sem contexto ou explicações para quem não conhece a história, ou mesmo, apenas não lembra.
A única constante no roteiro é a necessidade de Ayrton se sempre chegar em primeiro. Por vezes ignorando regras e até as tais normas de segurança. O que coloca a mídia, aqui representada na figura da jornalista fictícia Laura (Kaya Scodelario), em embate direto com o retratado, ao mostrá-lo como mau exemplo. Novamente, outra trama subaproveitada e com foco perdido. Não afeta o protagonista para além de algumas caras feias, e respostas mal criadas.
E por falar no protagonista, Gabriel Leone se sai bem ao recriar a "aura" que a figura pública de Ayrton carregava. Mas o roteiro não oferece muitas oportunidades para retratar uma pessoa real, que falha e se frusta como todos nós. De fato, à certa altura, a montagem quase atribui superpoderes à ele, ao criar um estado mental em que ele e a pista quase se tornam um. Um exagero, se algo do tipo acontecia, creio que se assemelhava mais ai hiper-foco, que a uma conexão mágica, como a minissérie constrói.
O restante do elenco não tem espaço para fazer muito, além de criar as personalidades, e algumas caricaturas, das figuras que o cercaram. Os destaques acabam ficando com Matt Mella e Gabriel Louchard, que tem mais tempo de tela, ao interpretar Proust e Galvão Bueno, respectivamente.
As sequencias de corrida são certamente os pontos altos da produção. Misturando filmagens, imagens de corridas reais, e computação gráfica, a composição coloca o espectador dentro das corridas, em ângulos impossíveis. E até recria a sensação de estar nos carros, e fotografias memoráveis do esporte, como aquelas com zoom que buscam os olhos do piloto em seus cockpits.
Trilha sonora, caracterização e reconstrução de época também acertam, ao juntas recriar a atmosfera de cada década retratada. Desde a infância em 1960 até a morte em 94. Sim, Pâmela Tomé ficou a cara da Xuxa!
Anunciada com muito alarde, e uma consequente construção de expectativa, Senna prometia ser um retrato épico de um dos grandes ídolos brasileiros. E de fato, o reverencia bastante, mas não se deixa humanizá-lo. Para quem sabe, construir identificação e empatia pela versão que vemos em tela, e contar menos com a memória afetiva que temos pelo Ayrton ícone. Se nos identificamos com o personagem de Leone, é porque já gostávamos do corredor antes de dar o play. Sendo assim, boa sorte para queles que tem menos de trinta anos.
Construindo uma imagem planejada, ao invés de apresentar uma pessoa real. Senna, até empolgará os fãs. Entretanto os mais exigentes não deixarão de notar, que a minissérie parece um grande checklist, de eventos e frases feitas, que os envolvidos escolheram mostrar para construir um Ayrton idealizado, e nada mais. Uma pena, pois com certeza, ele era muito mais que isso.
Senna tem seis episódios com cerca de uma hora cada, todos já disponíveis na Netflix!
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