Acredite se quiser, talvez nem seja tão difícil acreditar, conheço pessoas que negam a existência da ditadura militar brasileira. Pessoas que nasceram antes de 1964, e mesmo assim, como nada aconteceu especificamente com elas, juram de pés juntos, é tudo invenção. Não sei se a negação é pior ou melhor do que as pessoas que pedem seu retorno, mas queria ver qual a reação delas diante de obras como Ainda Estou Aqui.
Baseado no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, conta a história de sua família em seu período mais difícil, 1971. Ano em que seu pai, o engenheiro e ex-deputado, Rubens Paiva “desapareceu”. Quem não cochilou nas aulas de história talvez lembre, que milhares de pessoas foram perseguidas, presas, torturadas e muitas nunca voltaram pra casa, muito menos tiveram seus destinos revelados. Rubens Paiva foi apenas um dos casos mais notórios do regime. Que causou comoção dentro e fora do país.
Mas não é por esse viés que o filme de Walter Salles escolhe contar essa história. É pelos olhos daqueles que ficaram eternamente, ou por muito tempo, em busca de respostas. A família e principalmente a esposa Eunice Paiva (Fernanda Torres), que representam milhares de famílias que viveram a mesma situação.
Desviando os holofotes do lugar comum que seria mostrar explicitamente a violência e a política da época, o roteiro ainda sim consegue transmitir todo o peso das barbaridades daquele período histórico. Focando no impacto que a ausência repentina do pai tem na família, e principalmente nos esforços da mãe, em encontrar respostas, manter a família segura, e tentar poupar as crianças da cruel verdade.
Escolha de viés que coloca toda a responsabilidade de guiar o filme no talento de Fernanda Torres. Que cumpre seu papel brilhantemente, ao mostrar tanto a força quanto a fragilidade que compõe uma personagem complexa, rica e realista. Sua Eunice também enfrenta os horrores da ditadura pessoalmente, é quebrada, se reconstrói, sente medo, dúvida e insegurança, mas segue em frente, tirando forças da necessidade de ser o pilar daquela família.
Já Selton Mello compõe um Rubens Paiva que, mesmo com pouco tempo de tela, preenche a casa da família. Tornando sua ausência brutal mesmo para nós, que tivemos apenas alguns minutos de convivência com ele. Mesmo assim, se alguém ficar na dúvida da falta que esse pai faz na família, o elenco jovem escolhido à dedo, esboça uma gama de reações variadas, para cada um dos cinco filhos do casal, de idades e personalidades distintas.
Tudo isso intensificado por uma fotografia bem pensada, que nos apresenta uma vida em família, luminosa em uma casa à beira do mar. Que imediatamente se transforma em uma residência escura, e ameaçadora diante da presença dos militares. Tornando as filmagens e imagens de arquivo da família que permeiam toda a história, imediatamente nostálgicas, no sentido mais triste da palavra. De um tempo que lhes foi roubado, e não volta mais.
Já a tarefa de mostrar como a vida continua após uma perda do tipo, da qual não se tem certeza do desfecho, também fica à cargo de Eunice. Devemos esperar, ou seguir em frente? No caso de Eunice, devemos fazer o que conseguimos. Alguns sonhos precisam ser deixados para trás, como a construção da casa na serra. Já outros como, a busca pelo dente de leite perdido por uma das filhas, pode ser remediado por aqueles que ficaram. E ainda há aqueles que ficarão na espera pelo tempo que for preciso, como a arrumação da caixa de fotos, interrompida pelo sequestro do marido, e só finalizada quando sua morte é devidamente declarada, décadas depois.
E tudo isso é mostrado apenas na fase mais intensa e impactante do filme, o trecho passado na década de 1970. Mas o roteiro ainda traz vislumbres de outros dois momentos da família, quase que como notas de rodapé, para nos oferecer vislumbres de como essas vidas seguiram.
Em 1996, quando finalmente a morte de Rubens Paiva fora oficialmente declarada, trazendo finalmente o encerramento que a família tanto buscava. E nos anos finais de Eunice, quando matriarca já estava distante por causa do Alzheimer, e é interpretada pela Fernanda Montenegro. Arrancando lágrimas sem se mover, ou mesmo falar, ela emociona através de sutis expressões.
De volta ao trecho dos anos 70, onde a história do filme de fato se desenrola, é preciso mencionar a impressionante reconstrução da época. Uma verdadeira viagem no tempo, proporcionada principalmente pela música escolhida à dedo, figurinos, direção de arte e, principalmente, pela recriação de um Rio de Janeiro que não existe mais. Para quem conhece, mesmo que pouco, a cidade, é impossível não se perguntar, onde ou como gravaram em algumas locações.
Diretor do quebrador de barreiras Central do Brasil, Walter Salles tem êxito novamente em transpor o Brasil para a tela grande. Em um recorte, ao mesmo tempo intimista ao focar nos Paiva, e partilhado por adotar a história de muitas famílias, e alcançar a empatia de qualquer um que tenha a quem amar, e sentir falta. Além de uma aula de história obrigatória, para desmentir os negacionistas, e os saudosos de um tempo vergonhoso da biografia do nosso país.
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