Ela Disse

O poder reside onde as pessoas acreditam que ele está. Muito esforço e coragem é necessário para mudar o status quo e destituir este poder que nós mesmos concedemos à algo ou à alguém. De certa forma Ela Disse, é sobre isso. Sobre tirar do pedestal, e fazer arcar com as consequências de seus atos alguém que abusa desse suposto poder.

Baseado no best-seller Ela Disse: Os Bastidores da Reportagem que Impulsionou o #MeToo, escrito por Megan Twohey e Jodi Kantor, o longa mostra o trabalho destas mesmas duas jornalistas para revelar o esquema de assédio criado pelo produtor de cinema Harvey Weinstein. As dificuldades da investigação e principalmente de obter provas concretas, já que o sistema criado em torno do assediador para protegê-lo silenciava vítimas e destruía provas. 

Por décadas Weinstein usou seu poder e influencia para assediar e oprimir jovens atrizes e assistentes que trabalhavam para ele, em seu estúdio Miramax. A reportagem de Jodi Kantor (Zoe Kazan) e Megan Twohey (Carey Mulligan), que começou como uma investigação sobre má conduta no ambiente de trabalho, revelou o esquema criado para proteger o predador e silenciar as vítimas. 

O roteiro nunca usa os abusos como chamariz. Concentrando-se na força do relato das vítimas, com o auxílio de flashbacks que demonstram o efeito devastador de uma agressão sexual. Ao mesmo tempo que destrincha a forma como a indústria utilizava o sistema jurídico para controlar as vítimas através de acordos absurdos, evitando que os atos cruéis de Weinstein viessem à público. 

Um trabalho longo e cansativo (a investigação se estendeu ao longo de meses), que precisa superar não apenas as amarras dos acordos judiciais, mas medo pessoal de cada vítima de colocar a cara a tapa, as ameaças do próprio produtor e os desvios de seus assessores. Estes últimos um fator curioso, já que fica claro, que mesmo aqueles que acobertam Weinsten, não gostam dele. Trabalhando meramente por acreditar em seu autoridade.

Assim caminho para perceber que o agressor não teria poder, caso aqueles à sua volta parassem de lhe atribuir este valor é lento e árduo. Ao ponto de ficarmos cansados do lado de cá da tela, tendo uma noção clara da exaustão dos jornalistas diante dos empasses e becos sem saída. A montagem trabalha para construir essa sensação de trabalho incessante, que interfere também na vida pessoal das repórteres. 

O momento em que Kantor percebe que até a filha pequena, já começa à ser incluída inconscientemente na cultura misógina que banaliza o estupro é reveladora. É uma cena simples, de uma criança "descobrindo" uma palavra nova, mas ao mesmo tempo explica com simplicidade como esse sistema se perpetua, e dá à personagem motivação extra para seguir em frente. 

Conhecendo o efeito que a matéria teve na sociedade estadunidense, com reflexos no mundo todo, Maria Schrader escolhe da ênfase o relato de anônimas, deixando um pouco de lado às estrelas de Hollywood. Reforçando que esse sistema de agressão não se restringe a apenas um predador, e que qualquer pessoa pode ser vítima. Ainda sim, as atrizes estão presentes na história, afinal se nem mesmo as famosas tem voz, imagina quantas mulheres comuns não são silenciadas diariamente.

Já a figura de Weinsten nunca é mostrada diretamente. Sua participação é feita principalmente por áudios e ligações telefônicas. Aumentando ainda mais essa "aura" inacessível, e a invisibilidade que é capas de conferir seus atos hediondos. Nunca vemos seu rosto, assim como por décadas suas agressões ficaram escondidas. 

Além de Mulligan e Kazan com um trabalho preciso, a produção ainda traz um elenco consciente da gravidade e importância daquela jornada. Entre os nomes de destaque estão Patricia Clarkson, Andre Braugher, Jennifer Ehle e  Samantha Morton. Ashely Judd interpreta a si mesma no longa. Ela foi umas das atrizes que teve sua carreira influenciada por dizer não ao produtor. Gwyneth Paltrow também participa, mas apenas por voz.

A reportagem de Twohey e Kantor, criou um efeito que mudou a sociedade e puniu outros agressores além do seu "alvo inicial", criando o movimento #MeToo e dando coragem à outras vítimas. Agora, Ela Disse, vem mostrar o esforço por trás desse trabalho. Tanto das jornalistas, quanto das vítimas que precisaram "reviver" esses fatos. Mostrando que não é fácil, na verdade é absurdamente difícil, mas é possível. É possível destituir poderes ilusórios, vencer um sistema corrompido, atacar o machismo estrutural da sociedade e fazer justiça. Um filme necessário, que traz incentivo mais que suficiente para continuarmos lutando!

Ela Disse (She Said)
2022 - EUA - 129min
Drama

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