Boneca Russa

Nadia Vulvokov está comemorando seu 36° aniversário quando morre repentinamente, e no momento seguinte retorna ao início sua festa de 36 anos. O processo de falecimento e retorno ao mesmo dia se repete algumas vezes antes que a protagonista perceba que está em um loop temporal. É curioso como a premissa de Boneca Russa se assemelha ao terror farofa A Morte Te Dá Parabéns. Mas não se engane, a série Amy Poehler, Natasha Lyonne e Leslye Headland, tem muito mais a oferecer que sustos fáceis criados por mortes repentinas.

Nadia (Natasha Lyonne de Orange is The New Black) é uma programadora de jogos, inteligente, sarcástica, debochada e que não leva desaforo para casa. Solitária por opção, evita relações mais complexas, e faz grande uso de entorpecentes, como forma de manter seus traumas enterrados. Até que essa rotina de negação é interrompida pelo misterioso loop-temporal no qual a moça revive repetidamente a noite de sua festa, sempre culminando em sua morte.

Por causa de seu estilo de vida, demora um pouco para ela notar que a "sensação de déjà-vu", não é provocada pelas drogas de sua celebração. Nestes primeiros instantes a série aposta na comédia de erros, e na facilidade da protagonista em acidentalmente tirar a própria vida. Mas isso não sustentaria uma temporada inteira, mesmo com episódios de no máximo trinta minutos. O roteiro sabe disso, e não demora muito para mudar o status-quo.

Logo no terceiro episódio a produção foge do clichê de Feitiço do Tempo, e insere novos elementos que começam a construir sua mitologia própria. Ou melhor, não insere, mas começa a chamar atenção para eles. Praticamente todos os detalhes, que criam as reviravoltas ao longo da trama já estão lá desde o primeiro episódio. Desafiando expectadores desatentos, ou no mínimo convidando o público à reassistir a série para encontrar estas pistas perdidas na primeira sessão. O loop-temporal continua sendo o mote principal, mas os efeitos dele tem características próprias. Estas vão desde sutis mudanças entre uma repetição e outra, passando por figurantes que na verdade são personagens importantes, e até elementos que continuam sujeitos à ação do tempo apesar do loop.

É com as oportunidades criadas por estes elementos próprios que a série pode trabalhar temas mais complexos ligados à natureza de seus protagonistas. Desde os traumas de infância da protagonista, apresentados em forma de flashbacks, até os medos pequenos de personagens menores, como o medo da maternidade de Lizzy (Rebecca Henderson). Isolamento, relacionamentos superficiais, amizade, infidelidade, abuso de drogas, depressão e até suicídio, estão entre os temas abordados ou apenas apontados pelo afinado roteiro. Este que ainda inclui elegantes analogias, como as múltiplas vidas de um videogame que lhe permite repetir uma fase até que solucione o desafio em questão, as sete vidas de um gato, ou o comportamento solitário de um peixe beta.

Uma Nova-York escura e ocupada, e principalmente seus moradores compõem a atmosfera carregada em que a protagonista vive. Um mundo cheio de gente, com muita coisa acontecendo, onde é fácil se sentir sozinho. O elenco conta com escolhas acertadas, que vão desde a química entre as amigas da protagonista Maxine e Lizzy (Greta Lee e Henderson), até o tom reconfortante da terapeuta/figura-materna Ruth (Elizabeth Ashley). Sem fazer grande estardalhaço, de fato muita gente não vai notar, Yoni Lotan dá vida a quatro personagens diferentes, sem que haja explicação alguma, mas abrindo muito espaço para teorias.

Vale também apontar a personalidade metódica e nervosa de Alan (Charlie Barnett). O jovem tem claramente um distúrbio social e/ou de personalidade, seu exagero poderia facilmente beirar a caricatura. Barnett consegue o tom exato para torná-lo não apenas crível, mas também um contraponto preciso para a despreocupada protagonista.

Entretanto o destaque mesmo é de Natasha Lyonne. A atriz está envolvida com todos os processo de produção, criação, roteiro e até direção - vale mencionar aqui, todos os episódios são dirigidos por mulheres - e por isso não apenas inclui experiências próprias no roteiro, como parece compreender todas as vertentes de sua complexa anti-heroína. Mesmo, sendo desagradável, desbocada, mal-humorada e cheia de vícios é difícil não se apegar a Nadia, e torcer por ela. Essa empatia é resultado do bom trabalho de Lyonne, que sabe aproveitar a inteligência, humor cínico e potencial de crescimento da personagem, para compensar seus hábitos menos admiráveis.

Coesa e eficiente a série começa com uma premissa que inicialmente parece repetitiva, mas como um verdadeira matrioska (a tal boneca russa), logo vai mostrando suas várias camadas internas. Estas vão desde a complexidade da protagonista, até do universo e da trama propriamente ditos. O final é aberto à interpretação, e permitiria continuações. Embora particularmente, eu ache uma segunda temporada desnecessária.

Boneca Russa, não tem medo de entregar tudo que tem, e explorar bem suas ideias sem rodeios. Entregando uma série uniforme que mantém o fôlego e o interesse do espectador até o final. Uma história bem aproveitada e redondinha, sem pontas soltas, não precisa ser alongada e forçada em um segundo ano.

Boneca Russa tem oito episódio de no máximo trinta minutos cada, todos já disponíveis na Netflix.

4 Comentários

  1. Olá Fabiane!
    Esta série anda a piscar-me o olho lá na Netflix à dias... Acho que é desta que vou assistir, adoro séries com este tipo de temática.
    Parabéns pela resenha :)
    Abraço, Sónia
    Mundo da Fantasia

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  2. Obrigada! Assista sim, se gosta da temática não vai se arrepender.
    Grata pela visita, abraços!

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  3. kkk - parece que vc me convenceu a ver também.

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  4. Oba! Vem Kiddo, quando mais gente melhor. Bora fazer uma mesa redonda para discutir o final ;)

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