Livro vs Filme: Sem Fôlego

Brian Selznick foi o autor que estreou esta série de posts com a comparação entre as versões literárias e cinematográficas de A Invenção de Hugo Cabret. Outra obra do autor acaba de chegar aos cinemas brasileiros, é hora de fazer o Livro vs Filme de Sem Fôlego!

Vale sempre lembrar, essa série não é para apontar supostos erros na adaptação, ou mostrar que sei mais que os outros. A ideia é identificar as diferenças e tentar entender porque elas existem. Afinal, filme é uma coisa, e livro outra, e ambas as obras devem funcionar por conta própria, logo mudanças precisam ser feitas para se adequar à diferentes linguagens. Vamos lá?

O ministério dos "spoilerfóbicos" informa: este post contém SPOILERS do livro e do filme!

Sem Fôlego acompanha a jornada de duas crianças em épocas diferentes. Em 1927, Rose tem saudades da mãe famosa e vive cercada pelas rígidas regras de seu pai. Farta da situação, a garota foge para encontrar a mãe, jornada dificultada por sua condição de deficiente auditiva.Em 1977, Ben sente-se solitário e deslocado após a morte da mãe. Quando encontra um objeto que acredita ser a pista para a identidade e paradeiro do pai que nunca conheceu, o garoto não hesita em fugir dos tios e atravessar o país em busca de respostas.

1 - Fazendo distinção entre as linhas narrativas
No livro a história de Rose é toda contada com ilustrações, enquanto a de bem com texto. Para criar a mesma distinção para os expectadores, o longa metragem escolhe contar a história da garota em filme mudo e em preto e branco. A escolha faz alusão à condição da menina, assim como ela, não ouvimos nada, além de fazer referência aos filmes da época em que a história se passa, e que também são apreciados pela protagonista. A parte de Ben, é colorida e tem som, mas a fotografia também faz alusão à sua época com uma saturação amarelada que costumamos encontrar em fotos da época.

2 - É uma história sobre o universo dos surdos
O autor já afirmou isso. E no livro, Ben tem surdez parcial de nascença, e flertava com o mundo silencioso ao cobrir o ouvido bom sempre que não queria ouvir algo. O filme deixou essa informação de lado, até onde sabemos, Ben escuta normalmente. O resultado é impacto e dramaticidades, maiores quando o menino perde a audição em cena.

3 - Caixa Museu
Também é uma história sobre museus, e Ben, tanto no livro como no filme coleciona coisas. Nas páginas o garoto carrega por toda a jornada uma "caixa museu" (tá escrito assim, não fui eu que inventei), onde guarda suas lembranças e descobertas favoritas, entre elas uma tartaruga feita de conchas. O garoto também carrega um medalhão da mãe além do livro O Gabinete de Curiosidades. Na tela grande o protagonista também carrega muitas memórias em sua mochila (e não em uma mala com problemas no fecho), mas o foco nos objetos é simplificado. Nada de medalhão e tartaruga, a atenção aqui é no livro, incluindo o marcador de páginas que contem a pista do paradeiro de seu pai e em uma carteira, último presente da mãe, adornada com um lobo típico da região onde moram.

A escolha por manter a atenção do expectador em poucos objetos facilita a compreensão, você não precisa decorar uma lista de todos os tesouros de Ben. Mas a escolha da carteira com a imagem de um lobo é curiosa. Porque a mãe do menino lhe daria um objeto enfeitado com o animal que dá pesadelos à criança? Como simbologia no filme funciona direitinho, como gesto maternal é no mínimo estranho. Seria alguma técnica educacional para superar seus medos?

4 - Corte de cabelo
Rose nunca corta os cabelos no livro, mas no filme ela o faz logo antes de fugir de casa. A alteração no visual da versão das telas não é gratuita ou estética. Inicialmente é um gesto de rebeldia contra seus pais, mas o corte de cabelo na década de 1920 representava muita coisa. Faz parte da evolução social da época, quando as mulheres começaram a se lançar no mercado de trabalho, ser mais ativas na sociedade. O cabelo curto era prático para esta mulher mais ativa, também era resultado auto-estima e de auto-afirmação de gênero. Além claro, de ser o visual "da moda" das divas do cinema, que Rose tanto admirava. Logo, faz todo o sentido o corte de cabelo como representação da busca por liberdade e independência em que a menina se empenha.

5 - Atropelamento
Ainda desacostumado com o mundo silencioso Ben é quase atropelado no livro. No filme a cena é transferida para Rose, que apesar de habituada a não ouvir, está deslumbrada com Nova York e por isso se distrai. A mudança aumenta a sensação de perigo na trama da menina, a jornada de Rose ainda criança é mais curta que a de Ben, logo a adição é bem vinda e equilibra as narrativas.

6 - O apê do papai, e a moradia no museu
No livro, além do endereço da Kincaid, o marcador de livros encontrados por Ben também tem um endereço de um apartamento que se mostra um beco sem saída. O filme encurta a trama e leva o menino direto à livraria. O motivo para a mudança é simples, tempo. É preciso fazer cortes para abordar mais de 600 páginas de história em um filme de duas horas. O que também sofre com a falta de tempo é a estadia do menino no Museu de História Natural, bem mais curta no filme.

Uma solução legal aqui, foi começar a construir a amizade entre Ben e Jaime em uma cena de perseguição/brincadeira pelos corredores do museu. No livro a descoberta do museu e a amizade com Jaime acontecem em passagens distintas.

Morar em um museu: quem nunca quis?
7 - Preocupação com os tios
Ficou incomodado com o fato de Ben, não dar a mínima para os tios no filme. Fique tranquilo, entre as muitas páginas do livro o menino tem tempo de também ficar preocupado por não ter deixado nem um bilhete para a família. Eventualmente pensa em ligar para eles, e antes do fim do livro os tios tem notícias do menino. O longa abandona a família de Ben, e nunca retorna, detalhe que poderia ser solucionado pro uma frase, mas fica a cargo da imaginação do expectador. Esse foi um furo no roteiro mesmo, especialmente considerando o papel da prima do menino em sua fuga.

Agora uma pausa para algumas curiosidades legais:

A música Space Oddity de David Bowie, trilha sonora do filme, já estava presente no livro. Seus versos inclusive são usados para expressar o desenvolvimento de Ben ao longo da trama. A música curiosa que sua mãe gostava, começa a fazer sentido para o menino.

1927, ano em que se passa a história de Rose, também é o ano em que O Cantor de Jazz, primeiro filme falado foi lançado. Com ele e os demais "talkies", como eram conhecidos os filmes com som, Rose passa ser excluída também do cinema, arte que ela antes podia consumir tão bem quanto qualquer ouvinte.

A Feira Mundial de 1964 no Queens, mencionada tanto no livro quanto no filme realente aconteceu. Ela também aparece no filme Tomorrowland - Um lugar onde nada é impossível da Disney. O Panorama da cidade de Nova York também existe e pode ser visitado. Assim como o Museu de História Natural, que também foi frequentado por outro Ben, o Stiller na franquia Uma Noite no Museu.
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A fofa da Milicente (Rose), te falando que você deve
ver o filme e ler o livro! #YouShould
Sem Fôlego é uma obra tão interessante que não resisti e incluí algumas curiosidades neste post de análise não ortodoxa de duas obras. Livro ou filme? No final das contas ambos conseguem passar a mesma mensagem com muito charme, cada um com suas ferramentas. Não importa qual escolha (sugiro os dois), e a jornada será satisfatória.

Leia as críticas de Sem Fôlego livro e do filme.
Gosta do autor? Confira os textos sobre A Invenção de Hugo Cabret, também de Selznick.

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