Alias Grace

Analisando friamente, não é exatamente uma surpresa que as obras de Margaret Atwood estejam sendo redescobertas por novas mídias. Mas, é curioso, e com certeza preocupante, que ainda em 2017 seus temas e críticas sociais sejam tão atuais e relevantes, sejam eles abordados em uma distopia futurista, ou no Canada do século XIV. É neste segundo contexto que se passa a trama de Alias Grace, nova série da Netflix.

Grace Marks (Sarah Gadon) era uma adolescente em 1843 quando foi condenada à prisão perpétua por assassinato. Quinze anos depois o Dr. Jordan (Edward Holcroft), especializado em problemas da mente vem estudar seu caso, já que a moça alega não ter memórias do crime que a pôs na prisão, fazendo com que sua participação seja uma incógnita.

Com a protagonista como narradora nada confiável, a trama de Alias Grace vai e volta no tempo para contar a história de Grace, abordando não apenas a versão da moça dos fatos, mas de outras pessoas envolvidas nos eventos. O resultado é um intrigante quebra-cabeças, ou colcha de retalhos se preferir utilizar a analogia da própria série, que mesmo depois de montado, nunca de fato é solucionado.

Grace é culpada ou não? A incógnita permanente não é um problema, pelo contrário. Ela não apenas move a trama, mas mantém o expectador interessado, e serve de instrumento para criticar esta sociedade patriarcal não muito distante da nossa própria. Mulher e pobre, Grace viveu uma vida de abusos e nunca teve voz própria verdadeiramente. Afinal mesmo nos momentos em que pode se expressar esta fala não era realmente ouvida, fora manipulada por aqueles que se supunham superiores à ela, ou vinha carregada da análise gerada por seu lugar pré-determinado e imutável na sociedade.

Tal ambiguidade só é possível graças à excelente atuação de Gadon, que consegue transmitir as várias personalidades de Grace - a moça aprende a moldar seu comportamento para sobreviver a cada situação - sem nunca parecer caricata. É verdade que pode existir uma certa dúvida quanto a idade da personagem no início da jornada, já que a mesma atriz a interpreta desde o início da adolescência até a maturidade, mas nada que se torne um empecilho para se envolver com seus dilemas.

O restante do elenco, está igualmente afinado, com destaques para Holcroft que passa de forma sutil a decadência e obsessão do Dr. Jordan conforme ele se envolve no mistério de Grace. Rebecca Liddiard é outra grata surpresa. Sua vivaz, doce e ingênua Mary Whitney, conquista seu espaço logo que aparece em cena, tornando sua jornada mais dolorosa e sua presença permanente mesmo quando não está presente.

Ciente da eficiência de seu elenco, e da importância das nuances e sutilezas para abordar as muitas camadas desta história. A diretora Mary Harron acerta em dar tempo para observarmos pequenas reações e gestos dos personagens, sem medo de se demorar em alguns takes. Em outros, torna a edição mais dinâmica enfatizando a urgência em torno de um assassinato.

Reforçando a ambiguidade da personagem e o mistério sobre os fatos, a fotografia acerta ao escolher a luz natural tanto para dar toques de realismo, quanto um aspecto lúdico à narrativa. O mundo de Alias Grace, parece ao mesmo tempo natural e verídico, mas também belo demais para um mundo de abusos e injustiças. Excelente também é o trabalho da direção de arte, tanto na reconstrução de época quanto na significância dos detalhes. Das colchas de retalhos que Grace costura constantemente - com justificados closes em suas mãos - à discrepância entre as roupas das classes distintas, tudo tem sua função para tornar esta uma história bem contada.

Já que a comparação com a outra obra Margaret Atwood, que virou série este ano, é inevitável, vamos a ela. The Handmaid’s Tale (baseado em O Conto da Aia) e Alias Grace (do livro Vulgo Grace), trazem semelhanças ao abordar e criticar mazelas da sociedade de forma contundente, mesmo se utilizando de uma ficção para tal. E sim, nesta análise compartilham muitos de seus temas. Mas enquanto The Handmaid’s Tale, cria um universo rico e com oportunidades de abrigar outras histórias, Alias Grace é centrado em sua protagonista e na sua muito psique, eliminando chances - e a necessidade - de sequências. É uma obra completa e fechada, trabalha os temas e personagens que se propôs sem pontas soltas ou material desnecessário. As diferenças não tornam uma obra melhor que a outra, apenas as transformam em obras distintas, porém igualmente necessárias.

Alias Grace tem um texto rico, e as vezes até um pouco longo, mas eficiente, cativante e necessário. Com um grande mistério como centro, a série faz uso de personalidades complexas, dilemas e situações reais - o livro foi inspirado em um caso verdadeiro -  e até de elementos sobrenaturais e de psicologia não para inocentar ou condenar Grace, mas para apontar e criticar o mundo de opressão, hipocrisia, abusos e dor que a colocou nesta incógnita.

 Alias Grace tem seis episódios com cerca de uma hora, todos já disponíveis na Netflix. Leia a crítica de The Handmaid’s Tale, outra adaptação de um livro de Margaret Atwood para a telinha.

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